Jornal de Angola

Ver a telenovela na casa do vizinho

A contradiçã­o entre o casal era evidente. Agudizou-se com as pernoitada­s, infrutífer­as, da mulher fora de casa. Infrutífer­as por andar há duas semanas nessa aventura, sem conseguir alcançar a sua real pretensão.

- António Cruz

A senhora saía de casa todos os dias de manhã muito cedo para marcar lugar na “bicha” da loja do Suba, em Luanda, na ânsia de adquirir um televisor a preto e branco, para os filhos não continuare­m a ir “mendigar” na casa dos vizinhos, onde, muitas vezes, sofriam humilhação.

O marido orgulhava-se de ter pertencido aos Marianos, do Sambizanga, ter estado na central eléctrica do campo de concentraç­ão de São Nicolau e de ter lutado e sofrido bastante pelo país. Dizia não ter lutado para isso, para um dia a família andar nas “bichas” para comprar comida ou outro bem necessário, depois da Independên­cia Nacional. Mas não tinha como. A pressão dos filhos era sobre a mãe, observador­a da humilhação por eles vivida na zona onde residiam.

A TPA exibia, na altura, a telenovela de produção brasileira da Rede Globo “Gabriela”, na sua primeira versão, com Sônia Braga (Gabriela), Armando Bogus (Nacib), José Wilker (Mundinho Falcão) e Paulo Gracindo (Coronel Ramiro Bastos) nos principais papeis.

As únicas casas que possuiam aparelhos de televisão no bairro eram as do Só Ndanji e do Ti Bento.

Todos recorriam ao Só Ndanji, porque o Ti Bento tinha guardas. Era difícil, mesmo com a sua permissão. Só Ndanji impunha regras muito apertadas. Todos os que quisesssem assitir telavisão na sua casa tinham de levar os pés antes de entrar no seu quintal. Muitas vezes, essa orientação era dada já no momento do início da telenovela, para impedir as pessoas de regressare­m, pois, nessa altura encerrava o portão e somente abria no fim da telenovela.

Com alguma sorte, a pessoa entrava, mas perdia partes importante­s da telenovela. O mais velho tinha paciência: “hei, mostre lá os pés! Estão muito sujos. Retire-se. Vá lá tomar banho”.

As artimanhas começavam logo após o serviço noticioso, altura da apresentaç­ão daquela obra de produção da Rede Globo. Aí começava a revista.

A malta do bairro passou a mudar de estratégia. Lavava os pés no fim do noticiário e aguardava quietinha, em silêncio, na sala. Mas o kota tinha sempre uma na manga. Também mudou a sua manha. Instruía o filho caçula para ficar a frente do televisor na hora do início do espetáculo. E ficava a olhar, fixamente, para o irmão mais velho, amigo das crianças do bairro, para reagir à mínima careta. Bastava um pequeno sinal de tirá-lo dali e começava uma estrondosa choradeira que não parava. “Só a raiva!”. Tudo passava na cabeça das pessoas presentes. Murmúrios mais murmúrios. Mas não se podia fazer nada. A casa era dele.

Um dia desses, ainda tentaram aliciar o miúdo com rebuçados, chupa-chupas, bangue-bangue, bolinhos, micates, feitos a jeito pela vizinha retornada do Congo Kinshasa, micondos, quifufutil­a, tudo o que naquela altura agradava aos pequenos da sua idade. Mas, nada.Nem essa pequena tentativa de corrupção funcionou.

O pior de tudo foi o pai perceber o estratagem­a: “quem está a obrigar o meu filho a calar-se? Esta casa é minha. Toy, meu filho querido, chore à vontade.”

E o miúdo, então, abriase com todo o fôlego, num grito de irritar. Tudo estragado. O pessoal teve de engolir em seco e retirar-se em fila indiana.

O pior de tudo foi o pai perceber o estratagem­a: “quem está a obrigar o meu filho a calar-se? Esta casa é minha. Toy, meu filho querido, chore à vontade.”

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