Os cães e a pobreza
Já não é certo que viver como um cão é viver mal, abandonado e pobre. Há muitos vagabundos pela cidade e, não vale a pena fingirem que não se dão conta, alguns deles são cães. Quando vejo um cão magro, sonolento, com aspecto de doente, mas aparentemente inofensivo tenho medo dele: penso que é a maneira que ele encontrou para fingir que está moribundo quando, ao menor susto, pode atacar-nos, revelar-se como o raivoso que muitas vezes é. É o mesmo medo que sinto próximo da pobreza, mas com a diferença de que sei que é mais dificil fingir ser pobre, ainda que haja quem o finja.
Outros vagabundos, lamentavelmente, são homens, mulheres ou crianças que se comportam como se fossem cães ou as suas circunstâncias sociais particulares obrigam-nos a ser e estar como estão, na pobreza. Eles andam de um lado para o outro ou param em qualquer sitio e ficam à espera de não sei o quê, com olhares tristes, atitude matreira que nos interpelam, nos afugentam ou, também, a rodopiar à volta de si mesmos: muitos deles estão tão saudáveis que admira que estejam a pedir o que conseguiriam trabalhando. Com trabalho afastar-se-iam do limiar da pobreza.
Os mais corajosos e quem mais eu admiro são os vagabundos vendedores, os zungueiros e zungueiras por necessidade e esses são mesmo gente, “Guerreiros da Banda” chamar-lhes-ia o Jorge Gomes, o conhecido locutor da Rádio Mais: muitos andam com correias para cães nos ombros, sinal de que o mercado dos animais de estimação está a florescer, evidência de que há na cidade cães a viver melhor que homens.
Já as crianças e os adolescentes que também andam a “zanzar”, esses, todos o sabem, deveriam estar na escola, na rua é que não devem estar!
Os piores dentre os vagabundos são aqueles que, por mais paradoxal que pareça, podem ser “sedentários”: cuidam da vigilância de algumas residências e ou estabelecimentos comerciais no centro da cidade e em alguns lugares dos arredores, estão quase sempre sentados e só se levantam para o que lhes interessam e nem pedem mais. Eles ocupam com uma garrafa ou uma pedra uma vaga de estacionamento e a gerem como se sua fosse, obrigandonos a pagá-los: nisso, eles são um pouco cães, têm um ladrar silente, diferente, exigindo de nós a atenção que de outro modo não teriam, usam o espaço público como se fosse uma parcela privada e nós lhes permitimos.
A cidade dos cães é diferente da cidade dos homens, mas, às vezes, encontro cães que se comportam como se fossem homens e homens com atitudes de cães: convivemos com eles, enquanto o país está a mudar e eles não querem parar de ladrar ou de morder, deixaram de pensar há muito tempo e são reféns dos reflexos pavlovianos que não lhes permitem abandonar os maus hábitos do passado. Há muitos cães pela cidade e já nos demos conta que a maior parte são vagabundos: diminuir a quantidade deles evitaria termos de lidar com “gente tão canina”. Há cães que parecem gente: ao fim da tarde, costumo vê-los sair a passear, quase de mãos dadas com os seus donos e gingam tanto quanto eles. Os cães com dono e domésticos, aqueles que ficam apenas dentro das casas vivem bem, têm comida garantida e em troca, quando sabem que satisfazem aos seus donos, ladram e se aproximam em jeito ameaçador aos estranhos que, quando não fogem despavoridos, ficam alerta, geralmente a pensarem se eles têm mesmo as vacinas em dia.
Os cães domésticos pertencem à mesma classe social que os seus donos. Como nós, eles podem estar muito confundidos, não se sabe muito bem a qual das classes sociais pertencem: quando o seu dono parece desfrutar de uma vida folgada, mas, como se nada, cospe no chão, em público e em privado, quando tem um muito bom carro, mas, quando deve, não pára na passadeira para deixar os transeuntes atravessar, os cães o sabem, eles andam sem freio como cães que a educação não temperou.
Qualquer cão agradecido desfruta de cada vez maior quantidade de carne dos ossos que os donos lhes dão a saborear, mas sabe que eles podem ser tão bestas quanto ele. Muitos sabem que vivem como homens e não me admira que homens haja que, agora, viveriam melhores se vivessem como alguns cães.
Os cães são cães e os homens são homens: é preciso distingui-los bem. A sociedade em geral e as igrejas, em particular, deveriam deixar de fingir que são mais pobres do que querem dar a entender: é possível que se, entre outras medidas, conjuntamente com o que o Estado faz, elas, mais do que já o fazem, cedessem os seus espaços para se leccionarem pequenos cursos de ofícios práticos, para albergar gente vulnerável e que vive como os cães, esbateríamos a pobreza mais rapidamente.
A cidade dos cães é diferente da cidade dos homens, mas, às vezes, encontro cães que se comportam como se fossem homens e homens com atitudes de cães