Jornal de Angola

“Transporto em mim todo o continente africano”

- Mariana Pereira |*

Muito mudou em Mayra Andrade desde Lovely Difficult (2013). A chegada aos 30 anos - hoje tem quase 34 iniciou na cantora uma revolução que ainda nada foi capaz de travar, libertou-a, deu-lhe força, uma força marcadamen­te feminina, apresentou a cantora à sua voz e ela começou, de uma vez por todas, a cantar a sua vida. Manga, o novo disco, lançado nesta sexta-feira, é essa espécie de auto-retrato sem autocensur­a. A quem não gostar, previne, resta-lhe os anteriores quatro álbuns.Talvez não por acaso, Manga começou a formar-se depois de Mayra Andrade se mudar para Lisboa e numa noite sonhar que encontrara David Bowie, seu vizinho, conta no final da entrevista, com o gravador já desligado. Raramente se fala dela sem percorrer a sua trajectóri­a, que começa em Cuba, onde nasce, e atravessa Cabo Verde, claro, a sua terra, Senegal, Angola, Alemanha ou França. Em relação à música que faz, ela não tem dúvidas: “... Claro que transporto em mim Cabo Verde e todo o continente africano que me inspira de forma infinita” Estava a precisar de parar naquele ano que tirou para si e em que se mudou para Lisboa?

Não consigo compor na estrada, porque é muito intenso. Faço imensos concertos e sou uma pessoa que precisa de estar também longe da música para ter vontade de cantar. Não gosto de enganar as pessoas quando canto. Podia provavelme­nte fazer mais um ano ou dois de tourneé, mas quando começo a cansarme das músicas, acho que já não devo cantá-las às pessoas, por mais que haja lugares onde nunca estive. Acho que há um momento em que se tem de parar e trazer uma mensagem renovada e actualizad­a com o que se é: quando deixas de cantar com o coração porque já cantaste aquelas músicas demasiadas vezes. A música para mim é uma vocação, é um dom e sempre fiz isso de forma muito intuitiva e muito inteira, e quando sinto que está a deixar de ser, digo às pessoas com quem trabalho: "não vendas mais concertos. Acabou."

O que é que cria um certo modo automático em que se deixa de cantar com o coração?

Há uma realidade que é a estrada e a estrada desgasta. As pessoas nem imaginam o que a estrada faz. O problema não é o que fazemos no palco, é o desgaste das viagens. Eu conheço pessoas que sobem no avião duas vezes por ano e ficam uma semana a dizer como aquela viagem lhes destruiu a cabeça, o corpo, a saúde e o sono. Em Novembro eu fiz 25 viagens.

Como é que se foca? Cria rotinas?

Não existe rotina. Esse é o meu problema. Quando estou na estrada muito tempo já me sinto emocionalm­ente unbalanced, torno-me mais sensível às coisas, mais emotiva. Preciso de acordar em minha casa durante uma semana para estar outra vez bem.

O regresso à vida deve-se também a uma procura por canções?

Eu vivo porque preciso de viver e não penso de que forma é que isso poderá influencia­r a minha música. Não estou à procura. Eu tenho um lado muito reservado, mas emocionalm­ente sou muito intensa. Não estou a fazer um cálculo nem a pensar se isto vai alimentar o que estou a criar. Eu vivo e ao mesmo tempo acabo por ter uma certa distância das coisas que vivo. Sou a actriz e a narradora ao mesmo tempo. Há simplesmen­te um momento em que o copo enche e tu, seja para bem ou para mal, precisas de começar a escrever. Este disco é muito um disco de confissões, de revelações e foi uma forma para mim de exorcizar coisas, fazer

as pazes com certas coisas, expressar-me. É um auto-retrato? Sim. Eu componho desde o primeiro disco, mas falava sempre de histórias de vida e de personagen­s que não têm nada a ver comigo. Como se a minha vida não fosse suficiente­mente interessan­te, como se eu me consideras­se demasiadam­ente sortuda para falar das coisas que me tocavam ou que me magoavam. Como assim demasiado sortuda? Como se para entrar numa música tivesse de ser mais. Com o passar dos anos percebi que é só uma questão de perspectiv­a. Eu posso fazer uma música sobre esta mesa e essa música ser fantástica, se calhar não sabia era olhar para a mesa de uma forma interessan­te. Com o tempo aprendi a encontrar em mim os recursos para tocar os outros. É o momento em que a Mayra Andrade e a sua voz se encontram? Sim e é o momento de muita afirmação, da mulher, do ser humano. Tu podes ter uma voz, ser uma excelente intérprete e cantar coisas que na verdade não são tuas e não te tocam. A proporção de mim em cada disco foi aumentando. Neste, consegui de alguma forma revelarme mais. Há alguma coisa que aconteceu talvez a partir dos 30 - eu tenho quase 34. Houve uma revolução muito grande, está a haver. Houve uma ruptura com o meu eu criança. Isso manifestou-se até em sonhos que tive. Agora vejo aquela menina de frente e o que apetece às vezes é abraçá-la, acarinhá-la. Perguntam-me: “O que é que dirias ao teu eu de quando tinhas 17 anos e foste viver para Paris?” Agora já tenho uma distância tão maior, estou numa fase tão diferente que já tenho muito mais carinho por aquela pessoa. Como se agora tivesse algo para dizer? Eu sempre disse. Mas estou num momento da vida em que penso em mim com 17 ou 18 anos e digo: “Não sejas tão dura contigo. Foste tão forte.“Há dias estava a fazer um jogo de perguntas com amigos e uma delas foi: Qual foi o maior challenge que tiveste de enfrentar e de que forma conseguist­e dar a volta? Eu percebi que, sem dúvida, foi ir viver sozinha para Paris. É uma cidade duríssima. E eu para não fraquejar não me permitia sequer chorar. A minha professora de canto dizia-me: “Relaxa, tu precisas de chorar, o teu diafragma está que nem uma pedra.” Durante um ano eu não me autorizei a isso, porque tinha de ser forte. Acho que no momento em que estou aceito muito mais a minha fragilidad­e e isso faz com que eu esteja mais feliz e com vontade de dar carinho àquela miúda. É um disco corajoso. Hesitou ou pensou muito? Não, é este momento. Eu não teria feito este disco há quatro anos. É isto. Quem quiser quer, quem não quiser não quer. É um momento de empoderame­nto muito grande na vida de uma mulher. Esta força muitas vezes assusta os homens. Há homens que tentam, na medida do possível, travar esse empoderame­nto das mulheres, pode ser um pai a uma filha, um marido a uma esposa, um irmão a uma irmã. É uma coisa apenas íntima, sua, ou também tem a ver com o momento actual que vivemos? Acho que há uma onda de feminismo nova que é real, que se partilha de forma muito rápida, contagiamo­nos umas às outras. Mas aquilo de que estou a falar vem muito de dentro, é muito íntimo, pessoal. É o meu momento. Sinto que o tom do disco é muito directo. É como a galinha que põe o ovo: Pum, directo. Vem de mim. Sou muito eu neste disco. Não me censurei. Noutros momentos se calhar censurava-me: “O que é que vão pensar? O que é que a minha família vai dizer? O que é que em Cabo Verde vão achar?” Eu fiz o melhor que pude nos meus discos. E agora, se não gostarem disto, já têm quatro discos para ouvir. Agora vai ser assim. Há uma libertação muito grande, uma irreverênc­ia muito assumida. Acho que temos de celebrar a nossa força, é o que eu faço neste disco. Intuiu que era o momento? Eu fui sempre uma pessoa muito de instinto. E sei que o meu instinto me salvou de muitas situações, desde pequenina, de situações que podiam ser graves. O que tem a agradecer ao instinto? Muita coisa, é uma antena, um radar. Agradeço ao meu instinto por me proteger de situações, de pessoas, de mim mesma. Ajudou-me aos 17 anos em Paris, aos sete anos no Senegal, ajudou-me aos 10 anos em Cabo Verde. Foram situações das quais eu me safei sozinha. Situações de perigo? Relacionad­as com o ser rapariga, mulher? Sim. Não vou entrar em detalhes, mas sim, a mulher está muito exposta. Além das colaboraçõ­es que existem no álbum, de que forma entra Lisboa? Influencio­u sobretudo o

mood. Este disco não seria tão positivo, suave e dançante, com groove, se eu estivesse em Paris. Lisboa deu-me as vitaminas e o sorriso necessário. Mas claro que transporto em mim Cabo Verde e todo o continente africano que me inspira de forma infinita. Fiz uma viagem ao Ghana há 3 anos que me marcou imenso. Tenho imensa vontade de conhecer a Nigéria. A influência do continente africano contemporâ­neo está muito presente neste disco.

 ?? DR ??
DR
 ?? DR ?? Quase seis anos mais tarde Mayra Andrade traz novo disco, diferente dos outros
DR Quase seis anos mais tarde Mayra Andrade traz novo disco, diferente dos outros

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola