Prender pode não ser (sempre) a solução
A justiça não pode ser cega, menos ainda surda e muda. Mas também não pode passar por cima do princípio básico de que todo o cidadão é inocente até prova em contrário. Vale aqui voltar a lapidar frase do Presidente João Lourenço: Ninguém é suficientemente rico que não possa ser punido, ninguém é pobre demais que não possa ser protegido. Basta que a justiça faça o seu trabalho, cumpra o seu papel.
A justiça deve ser zelosa, mas não morosa. Isso é importante, na fase actual, até para a percepção dos investidores, para os indicadores do Doing Business mas sobretudo para a salvaguarda do princípio da separação de poderes e do Estado Democrático e de Direito.
Quando olhamos para os resultados, ainda que preliminares da operação resgate e da operação transparência, torna-se demasiado evidente que estavamos num Estado sem Estado, sem autoridade, um Estado extremamente corroído, onde o público se confundia com o privado. O Estado em que nos encontrávamos não sendo do desconhecimento geral, era, ao que parecia, consentido e nele se corporizavam fenómenos como a impunidade. O Estado tornou-se um trapo que urge remendar.
Vimos um Estado que tinha tudo menos o primado da Lei e a real autoridade do Estado, tendo muito mais autoritarismo, ali onde era apenas conveniente. E foi esse Estado que todos vimos crescer nos últimos anos, depois do alcance da Paz, mas com uma fraca sustentabilidade como se veio revelar depois de 2014.
Ora, se a guerra não foi uma fatalidade, também é hora de fazermos ressuscitar o bom senso e devolvermos o verdadeiro poder ao sistema judicial, fazendo-lhe actuar nos marcos estritos da legalidade e sem que isso se denote qualquer cruzada contra A, B ou C, conquanto estes mesmos não tentem preservar o status quo para dele continuar a tirar proveito.
Por isso, estas questões assumiram particular relevância e actualidade, em parte, devido ao combate à corrupção e o fim da impunidade, que apanhou na rede algum peixe graúdo, pouco habituado ao desconforto da justiça, mas não deixando de fora a pesca de arrastão a que todos estamos sujeitos. O que se pede apenas é que a justiça seja ela própria justa, que se paute pelo princípio da equidade e da razoabilidade, não actuando com dois pesos e duas medidas para situações similares.
É claro que estamos todos muito satisfeitos também porque a aprovação do novo Código Penal é um sinal importante de afirmação da nossa soberania. Levou anos. Muito ainda haveria por se discutir, entretanto, há notáveis avanços e uma clara harmonização com o espírito constitucional.
E é por falar especificamente do novo Código Penal que noto algumas inquietudes, resultantes de uma tendência muito nossa de reduzir a resolução dos nossos problemas a adopção de novas Leis. Vai daí termos um complexo jurídico muito avançado, mas nem sempre concretizado na vida do comum cidadão.
Outra prova desta nossa tendência em reduzir a resolução dos problemas sociais a armadura do Direito é a incontestável medida de criminalização forçada de algumas práticas e o “agravamento de penas”, em sede do cúmulo jurídico, uma tendência francamente em contra-ciclo com o resto do mundo, que tende a reduzir o agravamento de penas carcerárias. Se objectivamente as nossas cadeias mal conseguem suportar o número de reclusos que lá se encontram, defendo que não é o agravamento, neste caminho, das sanções ante os crimes e comportamento indevidos, que irá resolver a maioria dos nossos problemas. A sociedade vive chocada pela criminalidade – do colarinho branco à violência doméstica. Entretanto, o nosso desafio é outro: melhorar a educação e tornar sérias as instituições.
Veja-se, como exemplo, o que sucede em matéria de sinistralidade rodoviária, cujas principais causas são conhecidas: excesso de álcool, excesso de velocidade e problemas estruturais das nossas estradas – desde a ausência de sinalização e de iluminação até os incríveis retornos pelo eixo da via ou problemas herdados das vias coloniais, relacionados ao traçado com curvas apertadas e sem visibilidade, ou ainda de descidas bruscas, entre outros.
No “tempo do Comissário-geral Panda”, a Polícia era conhecida pelo seu absoluto rigor. É isso que faz a diferença e aquela postura deveria servir de paradigma. As penas eram ainda as actuais, mas os acidentes reduziram drasticamente.
É claro que é mais fácil punir. Mas devemos debruçarnos, com maior profundidade sobre as reais causas dos problemas que temos vindo a enfrentar – agravar as penas fará reduzir o crime? Deixo o campo aos sociólogos. Ademais, vício de jornalista? – era importante despenalizar os delitos de imprensa, pois a via actual parece francamente perigosa aos desígnios maiores do Estado democrático, sem prejuizo do binário liberdade versus responsabilidade.