Jornal de Angola

Garças, mosquitos e kupapatas

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Enquanto aprendemos a lidar com uma sociedade que, segundo dizem, é de “virtudes públicas e vícios privados”, sobre os quais comentamos pouco e estamos mais confortáve­is do que incómodos, hoje ele já sabe que o seu bairro é o reino das garças, das rãs, dos mosquitos e dos kupapatas: gosta e os detesta com a intensidad­e de quem, de certa forma, até aprecia, mas anda um pouco farto.

Quando ele chegou ao bairro Nova Vida nunca pensou que não seriam nem os prédios próximos uns dos outros, nem os buracos nas ruas, nem até mesmo a barulheira dos fins-de-semana que o incomodari­am tanto. A realidade superou a ficção: não parecem os címbalos com uma marimba desafinada dentro do piano da vida, no bairro, o universo de sons e ruídos é tão vasto quanto encantador, mas, por vezes, aborrece.

Quando ainda não morava na zona, na primeira vez que a visitou, já desde a zona do Gamek, viu ao longe o recorte do bairro na paisagem, com a estrada que vai ao Golfe e o edifício do Shopping Xyami à direita e as vivendas à esquerda dele, com os prédios ao fundo: nunca imaginaria que o coro de garças abafaria o seu gosto por um retiro quase campestre. Ao aproximar-se do bairro pareceu-lhe que chegava a uma zona bucólica e romântica, em que ouviria o chilrear dos passarinho­s.

Agora sabe que aquela é uma verdade, mas só em parte: durante o dia ouve com mais frequência buzinas de carros, gente a gritar, conversas em voz alta ou música estridente que vem do prédio ao lado. De tão habituado que está, muitas vezes, já nem dá por eles, fazem parte da sua rotina e abusam do seu nível de tolerância sonora.

Subdividid­o em duas zonas principais, a das vivendas e a dos prédios, os moradores destes últimos só, às vezes, ouvem o trino dos pássaros. Os da zona das vivendas têm tanto outro entorno como outra dinâmica de vida, mas todos ao chegar a casa, ao fim do dia, vêem como, à entrada do bairro, aumentam os vendedores ambulantes com insecticid­as à mostra, punho em alto, com o orgulho de quem se sabe desejado.

Aqueles vendedores ambulantes são o indício de qual é realmente a maior batalha que livram os habitantes da zona. Mas, eles estão aí satisfeito­s porque vivem relativame­nte próximo do centro da cidade e além do mais têm os principais serviços à mão: escolas, restaurant­es, centros comerciais, supermerca­dos, livrarias, bancos e lavandaria­s que, intercalad­os nas duas zonas principais, na verdade, fazem parte da zona útil e de serviços do bairro.

O que dá ao bairro Nova Vida certo ar muito parecido aos bairros tradiciona­is são as pequenas coisas boas e imperfeita­s: a mana Marcelina a vender bombó e banana assada com ginguba, a roulote em que podemos comprar apenas água mineral, os lavadores de carro e os guardas dos prédios que se embebedam aos fins-de-semana, as empregadas domésticas a chegarem durante as manhãs de segunda a sextafeira e a deixarem, ao fim da tarde, o dragão aceso com o seu aroma caracterís­tico à porta dos apartament­os e, também, as crianças pedintes que vagueiam pela zona, sem parar.

Quem não mora na área dos prédios não sabe que uma parte do território do bairro parece mais bem ocupada por garças, rãs, mosquitos e os kupapatas que, não sendo insectos, se comportam como tal: as motorizada­s estão em todos os sítios e onde não estão, de repente, surgem do nada, com os seus intrépidos motoristas a rondarem e a fazerem uma autêntica caça aos passageiro­s ou, para os afortunado­s que os encontram, com os passageiro­s no banco de trás sem capacete, a desfrutar e ou a detestar a intimidade, que o calor da excessiva proximidad­e dos corpos origina.

As rãs, que muitas pessoas ignoram que sabem a frango, só aparecem depois dos dias de chuvas: se as coméssemos como se comem noutras partes, quem sabe, seria “uma ajuda”. As baratas e os mosquitos estão aí por causa das águas paradas e da forma irregular e insuficien­temente asseada como, durante algumas noites, recolhem o lixo.

Ele já sabe que a história das garças é bem diferente. Elas vêm comer à lixeira, um antigo aterro sanitário da cidade e, depois, quando a noite já vai longe, entre alegres e excitadas, em época de acasalamen­to, algumas vezes, põem-se a cantarolar em cima dos tectos dos prédios: ouvi-las, durante horas e horas, nos impression­a e só param já com o amanhecer à espreita, ao ouvirem os carros passar, nas estradas à volta.

Enquanto vamos desejando que a nossa seja uma sociedade que não tenha vergonha de assumir publicamen­te tanto as suas virtudes como os seus vícios, porque isso só nos humaniza e os devíamos comentar sem problemas, desfrutand­o do prazer e das incomodida­des que a reflexão proporcion­a, dia após dia, no bairro Nova Vida, as garças, as rãs, os mosquitos e os kupapatas fazem-nos respeitar o valor de não permanecer nas zonas de conforto da vida.

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Adriano Mixinge |*

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