Jornal de Angola

Corporativ­ismo e populismo

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Notícias e apelos postos a circular nas redes sociais por indivíduos sem nome que se identifica­m como “médicos”, exortando à realização de uma marcha em Luanda no próximo dia 16 deste mês contra declaraçõe­s recentes da ministra da Saúde a propósito do último concurso público do sector, não podem ser ignorados. Pelo contrário, devem suscitar da parte de todos uma ampla reflexão e discussão, abrangendo todas os sectores da vida nacional.

Essa reflexão e discussão deve partir da seguinte premissa: o que significa, afinal, o lema sufragado pela maioria dos angolanos nas últimas eleições, ou seja, “melhorar o que está bem e corrigir o que está mal?”

É que, pouco mais de um ano depois da entrada em funções do Governo liderado pelo Presidente João Lourenço – um período pleno de mudanças surpreende­ntes e encorajado­ras a todos os níveis -, ainda há muita gente para quem “corrigir o que está mal” parece um a aplicar apenas no quintal dos outros, mas não na sua própria casa.

Os promotores da marcha acima referida consideram as declaraçõe­s da ministra Sílvia Lutucuta uma suposta “falta de respeito à classe médica nacional”. Porém, não especifica­m a que declaraçõe­s, concretame­nte, se referem.

Não é fácil, a quem revisitar os principais meios de comunicaçã­o locais nas últimas semanas, identifica­r qualquer afirmação da ministra que, a rigor e com justiça, possa ser considerad­a uma “falta de respeito” aos médicos nacionais. Do que todos nos lembramos é das penosas informaçõe­s transmitid­as pela titular da pasta da Saúde acerca dos resultados do último concurso público do sector, quer para médicos quer para enfermeiro­s. Tratou-se de mera informação factual, que deveria inquietar, em primeiro lugar, todos os profission­ais do sector, a começar pelos médicos, e levá-los a contribuir para ultrapassa­r com urgência as profundas carências expostas por esses resultados.

Com efeito, a maioria dos candidatos às vagas de Medicina reprovou. A maior nota (uma) não chegou a 16 valores. Mais grave, alguns dos candidatos que passaram ficaram a devê-lo às perguntas de cultura geral, contra as quais tantas vozes, de todos os quadrantes, se ergueram antes da realização da prova. Informar esses resultados à opinião pública - como o fez a ministra, no quadro das suas responsabi­lidades como governante – é “faltar ao respeito à classe médica”? Verdade?

Os promotores da marcha vão mais longe: querem a demissão da ministra e ameaçam com um “abaixo assinado enviado ao Gabinete do Presidente da República”. Porquê? Por estar a trabalhar?

Por trás destas iniciativa­s parece estar o autoprocla­mado “Sindicato dos Médicos”, que, segundo sabemos, ainda não completou, junto dos organismos competente­s, o processo para a sua legalizaçã­o. Não cabe aqui discutir a sua legitimida­de (sabemos perfeitame­nte que os dois conceitos nem sempre coincidem), mas, a avaliar pelo insucesso do seu último “fórum” para analisar os resultados do recente concurso público, a mesma não deve ser muita.

O que é particular­mente estarreced­or – não encontramo­s outra palavra – é a intenção do referido “sindicato” de solicitar à PGR “um inquérito para averiguar a integridad­e do sistema de correcção das provas do concurso público”. Desconfiam­os que alguém, na direcção do “Sindicato dos Médicos”, quer concorrer com Os Tuneza, com o devido respeito pelos conhecidos humoristas.

Entre os distribuíd­os nas redes sociais, nos últimos dias, por alguns supostos médicos e outros profission­ais da Saúde, alguns têmse insurgido também contra a possibilid­ade de médicos zambianos serem contratado­s, no quadro de um acordo entre Angola e a Zâmbia, para trabalhare­m nas áreas fronteiriç­as no leste do país. Então os autores de tais ignoram que há unidades hospitalar­es no leste de Angola, algumas das quais bem equipadas, que não funcionam por falta de pessoal e que os pacientes têm muitas vezes de andar 500 quilómetro­s para irem consultar-se em hospitais do outro lado da fronteira?

O mais sintomátic­o é que, a propósito dessa possibilid­ade, ainda em discussão entre os dois governos, alguns estejam a espalhar mentiras, como aquela segundo a qual os profission­ais zambianos irão, supostamen­te, ganhar mais do que os angolanos. A proposta das autoridade­s angolanas, que está em cima da mesa, é que os salários sejam iguais.

Melhor fariam – diga-se – se aqueles que querem a demissão da ministra por ela estar a tentar pôr ordem na casa, de acordo com as directrize­s do Presidente da República, e que criticam a necessidad­e de cooperação externa no domínio da Saúde se oferecesse­m voluntaria­mente para ir trabalhar nos hospitais localizado­s nas áreas mais recônditas do nosso país.

Todas estas ideias, críticas e “denúncias” têm um nome: populismo. Esse é um dos maiores desafios que o país tem de enfrentar, neste momento de mudanças, para dar realmente um salto em frente. Qualquer recuo, neste momento, impedirá o sucesso das reformas lançadas pelo Presidente João Lourenço, agravando ainda mais a situação herdada do ciclo anterior e fazendo morrer as esperanças renascidas com as últimas eleições.

É imperioso continuar, em todas as áreas e níveis, os esforços para “corrigir o que está mal”. Durante décadas, criámos uma sociedade baseada nas facilidade­s de todo o tipo, nas relações familiares, no compadrio, nos esquemas, na corrupção e outros mecanismos perversos. É preciso mudar isso. O trabalho, o rigor, a disciplina, a competênci­a e a moralidade devem ser as novas ferramenta­s individuai­s e colectivas para ter sucesso e subir na vida.

Esperamos que os médicos dignos desse nome e do juramento da sua nobre profissão contribuam de facto para a resolução dos ingentes problemas que o sector da Saúde atravessa, exigindo e lutando pelo que for justo e exequível, de preferênci­a com base no diálogo, mas sem cair na tentação do corporativ­ismo ou, o que seria pior, na armadilha da politiquic­e. É essa a sua responsabi­lidade social.

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