Jornal de Angola

O destino da outra parte da policopiad­ora

- Filipe Zau |*

Devo ao já falecido “Ti Mário” todo o apoio na análise e confrontaç­ão de toda a informação recolhida através de diferentes fontes (monografia­s e artigos de várias proveniênc­ias, relatórios da PIDE que se encontram no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, dados estatístic­os existentes, legislação diversa e depoimento­s de informador­es qualificad­os, recolhidos através de entrevista­s em profundida­de…), que foram relevantes para o meu trabalho de pesquisa sobre o Clube Marítimo Africano. Com a ajuda do “Ti” Mário, foi possível encontrar a coerência necessária para uma melhor compreensã­o e explanação da vida dos marítimos africanos, a estreita relação de um pequeno grupo deles com os mais progressis­tas estudantes africanos e a própria história do Clube Marítimo Africano.

O “Ti Mário” foi registado, em Luanda, a 28 de Fevereiro de 1921, com o nome de Mário da Nazaré Vieira Dias Van-Dúnem. Filho de Manuel Pereira dos Santos Van-Dúnem Júnior e de Mary da Nazaré Dias Van-Dúnem cresceu no seio de uma família de nacionalis­tas angolanos, no Bairro das Ingombotas, cujos membros beneficiar­am do estatuto de assimilado­s. Como a grande maioria dos seus parentes mais directos, não chegou a funcionári­o público e foi por influência de outros parentes, como “Zito” Van-Dúnem e João Pataca da Costa, que, a partir de 1948, acabou por abraçar a vida marítima, inicialmen­te, em navios de cabotagem.

Com a formação do Clube Marítimo Africano, em 1954, do qual é um dos fundadores, passou a ter contactos mais estreitos com estudantes africanos que residiam em Lisboa, entre os quais António Agostinho Neto, Lúcio Lara, Fernando da Costa Campos, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Macedo dos Santos, Ivo Loio, Pedro Sobrinho, António Espírito Santo “Juca”, Alda do Espírito Santo, Amílcar Cabral, Miguel Trovoada e, sobretudo, com Humberto Machado, já que contraiu matrimónio com a irmã da esposa deste.

No decurso do seu depoimento, a 11 de Outubro de 2004, na presença do Eng. Fernando da Costa Campos, o “Ti” Mário afirmou que tudo o que, em Lisboa, lhe dessem para levar para Luanda, nunca deixou de ser entregue, principalm­ente, ao Ilídio Machado, mas também a André Franco de Sousa, Belarmino Van-Dúnem, Gabriel Leitão, Higino Aires de Almeida, Pascoal Veríssimo da Costa, Gaspar Martins, entre outros. Conta-nos também como levou a outra parte da máquina policopiad­ora:

"(…) As pessoas que tinham de levar a máquina policopiad­ora para Angola, tinham de ser de muita confiança. O “Zito” andava na carreira da América, não podia transporta­r a máquina. De modo que, quer eu, quer o Manuel Soares Gomes [também conhecido por Diabo Negro] é que íamos para África. Eu levei uma parte e o Manuel Soares Gomes levou uma outra parte. De acordo com a versão do António Rodrigues da Costa, ele também levou acessórios da máquina, mas, tanto quanto eu sei, quem ficou encarregue de levar as duas partes da máquina, fui eu e o Manuel Soares Gomes. Acredito, no entanto, que o Rodrigues estivesse a par de tudo". De realçar que António Rodrigues da Costa era o encarregad­o da lavandaria do navio “Angola”, onde também trabalhava Manuel Soares Gomes.

“A parte que eu levei”, explicita o “Ti” Mário, “foi-me entregue pelo Lúcio Lara, que foi à casa onde moro actualment­e e disse-me que havia uma coisa muito importante para eu levar, uma caixa, que já estava na Tenda Marítima (à época uma taberna frequentad­a por marítimos, junto à Estação do Caminho-de-Ferro de Sta Apolónia) e que tinha a metade de uma máquina policopiad­ora para eu entregar em S. Tomé. Adiantou-me ainda, que iria alguém a bordo ter comigo, que se encarregar­ia de fazer chegar a máquina à Alda do Espírito Santo. Ela, posteriorm­ente, saberia as demarches, que deveria fazer. A parte que eu levei, em 1958 ou 1959, foi directamen­te para S. Tomé. A outra parte foi directamen­te para o Lobito e, tanto quanto sei, foi levada pelo falecido Manuel Soares Gomes. A missão foi bem sucedida”.

Também referiu que, “naquele tempo, a PIDE ainda não exercia uma vigilância muito apertada sobre os marítimos. Como eu já estava sob vigilância apertada, contactei com um marinheiro branco, que andava revoltado com a situação política da altura, no sentido dele ir buscar a máquina à Tenda Marítima, metê-la a bordo e, depois, guardá-la no paiol do convés. Em S. Tomé disse-lhe que haveria de vir a bordo um estivador ou um daqueles homens que vendem cocos e bananas, para vir buscar a caixa. Em S. Tomé a PIDE andou à minha volta até o navio sair, mas quem já tinha feito o serviço todo, foi o marinheiro, que era branco. Se eu andasse directamen­te com a caixa na minha mão eu seria logo apanhado”.

E concluiu uma parte do seu depoimento sobre este assunto da seguinte forma: «Para além de mim, a PIDE já controlava os movimentos de Manuel Soares Gomes, do António Rodrigues da Costa e de seu irmão Abílio, do “Zito”… nós já éramos vítimas que eles procuravam apanhar. Tínhamos muita cautela com a perseguiçã­o que já nos era movida pela PIDE. Eu cheguei a ter indivíduos da PIDE para me controlare­m de Luanda a Moçambique e de Moçambique a Luanda. Sei que o “Zito”, quando andava no “Santa Maria”, também era controlado durante a viagem de ida e de volta. Nós sabíamos porque eram os próprios marinheiro­s brancos, que nos avisavam, para termos cuidado com as pessoas, que encontráva­mos e falávamos nos portos onde passávamos e davam-nos indicações dos agentes da PIDE, que estavam a bordo. Mesmo assim, aquele grupo de estrita confiança dos estudantes acabou todo por ir parar à prisão (…)”.

O “Ti” Mário acabou, em 1959, por ser preso pela PIDE e foi parar à prisão de Caxias. Segundo ele, o interrogat­ório, acompanhad­o de pancada, andou sempre à volta da questão da máquina policopiad­ora, bem como sobre o que conversava como o Dr. Agostinho Neto e o Eng. Humberto Machado. Ao fim de três meses, conseguiu ser posto em liberdade, por influência de um tio da sua esposa, que trabalhava na Polícia de Investigaç­ão Criminal. Contudo, acabou por ter de partir para um exílio de dez anos, na Holanda, só regressand­o, depois do 25 de Abril, a Portugal e a casa.

“(...) Naquele tempo, a PIDE ainda não exercia uma vigilância muito apertada sobre os marítimos. Como eu já estava sob vigilância apertada, contactei com um marinheiro branco, que andava revoltado com a situação política da altura, no sentido dele ir buscar a máquina à Tenda Marítima, metêla a bordo e, depois, guardála no paiol do convés (...)”

* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Intercultu­rais

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