O destino da outra parte da policopiadora
Devo ao já falecido “Ti Mário” todo o apoio na análise e confrontação de toda a informação recolhida através de diferentes fontes (monografias e artigos de várias proveniências, relatórios da PIDE que se encontram no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, dados estatísticos existentes, legislação diversa e depoimentos de informadores qualificados, recolhidos através de entrevistas em profundidade…), que foram relevantes para o meu trabalho de pesquisa sobre o Clube Marítimo Africano. Com a ajuda do “Ti” Mário, foi possível encontrar a coerência necessária para uma melhor compreensão e explanação da vida dos marítimos africanos, a estreita relação de um pequeno grupo deles com os mais progressistas estudantes africanos e a própria história do Clube Marítimo Africano.
O “Ti Mário” foi registado, em Luanda, a 28 de Fevereiro de 1921, com o nome de Mário da Nazaré Vieira Dias Van-Dúnem. Filho de Manuel Pereira dos Santos Van-Dúnem Júnior e de Mary da Nazaré Dias Van-Dúnem cresceu no seio de uma família de nacionalistas angolanos, no Bairro das Ingombotas, cujos membros beneficiaram do estatuto de assimilados. Como a grande maioria dos seus parentes mais directos, não chegou a funcionário público e foi por influência de outros parentes, como “Zito” Van-Dúnem e João Pataca da Costa, que, a partir de 1948, acabou por abraçar a vida marítima, inicialmente, em navios de cabotagem.
Com a formação do Clube Marítimo Africano, em 1954, do qual é um dos fundadores, passou a ter contactos mais estreitos com estudantes africanos que residiam em Lisboa, entre os quais António Agostinho Neto, Lúcio Lara, Fernando da Costa Campos, Mário Pinto de Andrade, Eduardo Macedo dos Santos, Ivo Loio, Pedro Sobrinho, António Espírito Santo “Juca”, Alda do Espírito Santo, Amílcar Cabral, Miguel Trovoada e, sobretudo, com Humberto Machado, já que contraiu matrimónio com a irmã da esposa deste.
No decurso do seu depoimento, a 11 de Outubro de 2004, na presença do Eng. Fernando da Costa Campos, o “Ti” Mário afirmou que tudo o que, em Lisboa, lhe dessem para levar para Luanda, nunca deixou de ser entregue, principalmente, ao Ilídio Machado, mas também a André Franco de Sousa, Belarmino Van-Dúnem, Gabriel Leitão, Higino Aires de Almeida, Pascoal Veríssimo da Costa, Gaspar Martins, entre outros. Conta-nos também como levou a outra parte da máquina policopiadora:
"(…) As pessoas que tinham de levar a máquina policopiadora para Angola, tinham de ser de muita confiança. O “Zito” andava na carreira da América, não podia transportar a máquina. De modo que, quer eu, quer o Manuel Soares Gomes [também conhecido por Diabo Negro] é que íamos para África. Eu levei uma parte e o Manuel Soares Gomes levou uma outra parte. De acordo com a versão do António Rodrigues da Costa, ele também levou acessórios da máquina, mas, tanto quanto eu sei, quem ficou encarregue de levar as duas partes da máquina, fui eu e o Manuel Soares Gomes. Acredito, no entanto, que o Rodrigues estivesse a par de tudo". De realçar que António Rodrigues da Costa era o encarregado da lavandaria do navio “Angola”, onde também trabalhava Manuel Soares Gomes.
“A parte que eu levei”, explicita o “Ti” Mário, “foi-me entregue pelo Lúcio Lara, que foi à casa onde moro actualmente e disse-me que havia uma coisa muito importante para eu levar, uma caixa, que já estava na Tenda Marítima (à época uma taberna frequentada por marítimos, junto à Estação do Caminho-de-Ferro de Sta Apolónia) e que tinha a metade de uma máquina policopiadora para eu entregar em S. Tomé. Adiantou-me ainda, que iria alguém a bordo ter comigo, que se encarregaria de fazer chegar a máquina à Alda do Espírito Santo. Ela, posteriormente, saberia as demarches, que deveria fazer. A parte que eu levei, em 1958 ou 1959, foi directamente para S. Tomé. A outra parte foi directamente para o Lobito e, tanto quanto sei, foi levada pelo falecido Manuel Soares Gomes. A missão foi bem sucedida”.
Também referiu que, “naquele tempo, a PIDE ainda não exercia uma vigilância muito apertada sobre os marítimos. Como eu já estava sob vigilância apertada, contactei com um marinheiro branco, que andava revoltado com a situação política da altura, no sentido dele ir buscar a máquina à Tenda Marítima, metê-la a bordo e, depois, guardá-la no paiol do convés. Em S. Tomé disse-lhe que haveria de vir a bordo um estivador ou um daqueles homens que vendem cocos e bananas, para vir buscar a caixa. Em S. Tomé a PIDE andou à minha volta até o navio sair, mas quem já tinha feito o serviço todo, foi o marinheiro, que era branco. Se eu andasse directamente com a caixa na minha mão eu seria logo apanhado”.
E concluiu uma parte do seu depoimento sobre este assunto da seguinte forma: «Para além de mim, a PIDE já controlava os movimentos de Manuel Soares Gomes, do António Rodrigues da Costa e de seu irmão Abílio, do “Zito”… nós já éramos vítimas que eles procuravam apanhar. Tínhamos muita cautela com a perseguição que já nos era movida pela PIDE. Eu cheguei a ter indivíduos da PIDE para me controlarem de Luanda a Moçambique e de Moçambique a Luanda. Sei que o “Zito”, quando andava no “Santa Maria”, também era controlado durante a viagem de ida e de volta. Nós sabíamos porque eram os próprios marinheiros brancos, que nos avisavam, para termos cuidado com as pessoas, que encontrávamos e falávamos nos portos onde passávamos e davam-nos indicações dos agentes da PIDE, que estavam a bordo. Mesmo assim, aquele grupo de estrita confiança dos estudantes acabou todo por ir parar à prisão (…)”.
O “Ti” Mário acabou, em 1959, por ser preso pela PIDE e foi parar à prisão de Caxias. Segundo ele, o interrogatório, acompanhado de pancada, andou sempre à volta da questão da máquina policopiadora, bem como sobre o que conversava como o Dr. Agostinho Neto e o Eng. Humberto Machado. Ao fim de três meses, conseguiu ser posto em liberdade, por influência de um tio da sua esposa, que trabalhava na Polícia de Investigação Criminal. Contudo, acabou por ter de partir para um exílio de dez anos, na Holanda, só regressando, depois do 25 de Abril, a Portugal e a casa.
“(...) Naquele tempo, a PIDE ainda não exercia uma vigilância muito apertada sobre os marítimos. Como eu já estava sob vigilância apertada, contactei com um marinheiro branco, que andava revoltado com a situação política da altura, no sentido dele ir buscar a máquina à Tenda Marítima, metêla a bordo e, depois, guardála no paiol do convés (...)”
* Ph. D em Ciências da Educação e Mestre em Relações Interculturais