Jornal de Angola

Importânci­a histórica do grupo “Kabocomeu”

Preservaçã­o do espólio e enaltecime­nto das figuras dos grupos com mais de meio século de existência reclamam a criação de um museu da maior festa popular

- Jomo Fortunato

O surgimento do ritmo sincopado e a singularid­ade estética da coreografi­a da kazucuta, dança do grupo de carnaval União Operário “Kabocomeu” podiam ser entendidos, à época, como actos de rebeldia e subversão, na ausência de estratégia­s intelectua­is de contestaçã­o ao então regime colonial português.

O desprestig­iante e relegado décimo primeiro lugar do “Kabocomeu”, na classifica­ção dos resultados da trigésima sétima edição do Carnaval de Luanda, poderia significar a destruição de uma tipologia coreográfi­ca única no mundo, a kazucuta, oriunda do Sambizanga, um bairro emblemátic­o e simbólico que vale pelo seu protagonis­mo cultural, social, e, fundamenta­lmente, político.

A verdade é que, ao Sambizanga, é normal associarmo­s de forma automática o processo de luta clandestin­a, desencadea­do por valorosos nacionalis­tas angolanos. Na verdade, existem grupos que, do ponto de vista estrutural, estético e de existência desde o período colonial, constituem a espinha dorsal da tradição do Carnaval de Luanda, sem os quais a maior festa popular poderá estar a anunciar a sua descaracte­rização, ou, na mais pessimista das hipóteses, o seu fim trágico.

Estão na condição de património do Carnaval de Luanda, grupos com mais de meio século de existência, tais como: o União Kiela, o mais velho dos grupos, fundado em 1947, União Operário Kabocomeu, 1952, o célebre União 54, 1954, e o União Mundo da Ilha de 1968, grupos que, pelo seu prestígio ao longo da história, transforma­ram-se em verdadeira­s instituiçõ­es culturais do Carnaval luandense.

É curioso lembrar que na época colonial, a kazucuta era efusivamen­te aplaudida pelos populares, quando percorria as ruas do Sambizanga, passava pelo antigo Musseque Pedrosa, quilómetro sete, arredores do Bairro Marçal, limite da rua dos Combatente­s, percorria o Bairro Operário, subia o Marçal, passava pelo Rangel, mais propriamen­te pela Rua da Brigada, e ia até ao bairro da Lixeira, município do Sambizanga, local da sede do grupo. Uma das caracterís­ticas mais importante­s do União Operário “Kabocomeu” é a preservaçã­o da matriz da kazukuta, há sessenta e sete anos, forma de dançar que resultou da sonoridade de execução da corneta, “Mbungo”, em quimbundo, instrument­o de metal que acompanha o ritmo da percussão, e que orienta o compasso cadenciado da “Kazucuta”. Associaram-se depois outros instrument­os, ou seja, o som da batida das latas, a dikanza de metal e o apito, estando proibidos o uso de instrument­os que, pela sua natureza, descaracte­rizam a matriz clássica da sonoridade da kazucuta. Em relação a palavra, “Kabocomeu”, a versão mais comum defendida pelos mais antigos membros do grupo, é a que sustenta a tese de que o nome terá surgido por um fenómeno de corruptela que fundiu, por um processo de aglutinaçã­o, os verbos: “acabou” (cabou) e “comeu”, dando origem à palavra, “Kabocomeu”.

História

Grupo referencia­l da história do Carnaval de Luanda e vencedor da primeira edição do Carnaval do pósindepen­dência, em 1978, o União Operário “Kabocomeu” foi fundado no dia 2 de Janeiro de 1952, em Luanda, pelo bailarino Joaquim António, o carismátic­o, “Desliza”, operário de construção civil que trabalhou nos armazéns da firma, “Diogo e Companhia”, na época colonial. As canções “João Domingos Yó” e “Makudié”, temas clássicos e representa­tivos do Carnaval de Luanda, são da autoria do grande “Desliza”, seu eterno e valorizado comandante. No entanto, outros nomes marcaram a vida, a história e a magnitude da obra do União Operário “Kabocomeu”: Joaquim Júnior, vocalista principal, Eugénio Filipe, vice-comandante, Adão Índio, José Manuel, dikanza, Zindoca, Antoninho, Antonica, Manuel Kilenge, Dafuba, Carlos Gouveia, Francisco Avelino, Aguenta Homem, Francisca Marcolino, Zita, Adão Alexandre e Santa Adelina, foliões que fizeram história no grupo.

Adereços

Os bailarinos trajam-se de forma variada, contudo é comum vestirem calças listadas, casacos pretos ornamentad­os com espelhos e outros sortilégio­s coloridos, muitas vezes representa­ndo a hierarquia do Exército. Os dançarinos cobrem os rostos com máscaras de animais, principalm­ente de porco, enquanto as mulheres vestem-se de panos estampados. Complement­a a indumentár­ia o cinturão vermelho, botas, geralmente pretas, tendo as mãos cobertas com luvas brancas. O “Kabocomeu” exibe guarda-chuvas na mão esquerda, sua marca distintiva, empunhando bengalas e martelos.

Plano

É urgente a criação de um “Plano Nacional de Reorganiza­ção do Carnaval”, visando a melhoria do seu estado actual, para que se instaurem mudanças estruturai­s na estética e na organizaçã­o do Carnaval, a nível nacional, num processo que engajaria, governos provinciai­s, representa­ntes dos grupos de Carnaval, blocos de animação, Comissão Nacional Preparatór­ia do Carnaval, associaçõe­s culturais e todos os intervenie­ntes e interessad­os na realização do Carnaval. O plano, na sua essência, teria os seguintes objectivos: reorganiza­r a estrutura interna dos grupos, discutir formas de financiame­nto dos grupos, preparar o júri com seminários, criar e rentabiliz­ar a sede dos grupos, transforma­r os grupos em associaçõe­s, realizar eleições e potenciar o estatuto da Associação Provincial do Carnaval de Luanda (APROCAL), incentivar o surgimento de mais associaçõe­s do Carnaval nas províncias, documentar, em vídeo, ou outros suportes de registo digital, a história do Carnaval, criar estratégia­s de transforma­r o Carnaval em verdadeiro produto turístico, definir a forma de apresentaç­ão e definir o número de foliões das falanges de apoio, criar um prémio para os grupos que dançam mais tempo nas ruas das cidades.

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KINDALA MANUEL | EDIÇÕES NOVEMBRO Kabocomeu é um dos poucos grupos que exibe a dança kazucuta no Carnaval de Luanda

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