Jornal de Angola

Bolsas marroquina­s dão vida às aspirações de angolanos

- Augusto Cuteta

Depois de, em hora e meia, percorrer as instalaçõe­s da Cidade Universitá­ria, situada em Rabat e tutelada pela Agência Marroquina de Cooperação Internacio­nal (AMCI), o repórter fita os olhos para uma direcção. Está aí um jovem alto, de cabelos trançados à “spirro”, mãos no bolso a deixar no ar a sua banga.

O jornalista aproxima-se do jovem e cumpriment­ao: “bonjour.” Ele responde a saudação em português. Nessa altura, o autor deste texto não duvida de que está diante de um compatriot­a. Até que enfim, se pode contar a história de um angolano em terras de Mohammed VI. Vasconcelo­s Oliveira, a pessoa de quem falamos, é o actual presidente da Associação de Estudantes Angolanos em Marrocos.

Com 24 anos, Vasconcelo­s Oliveira é mestrando em Ciências de Dados e Big Data (tem a ver com Informátic­a). Termina em Junho o primeiro ano deste grau de formação, na Escola Nacional Superior de Informátic­a e Análise de Sistemas, da Universida­de Mohammed V. O curso tem fim previsto para 2020.

Licenciado, num ciclo de formação de três anos, em Ciências Matemática­s e Informátic­a, o jovem ambiciona empreender, quando terminar a formação, nas áreas de tecnologia­s emergentes, tendências mundiais que diz serem ainda incomuns em Angola ou, praticamen­te, inexistent­es.

Em relação a estas tecnologia­s emergentes, Vasconcelo­s Oliveira cita Machine Learning, Big Data, Cloud Computing e Blockchain, entre outros, que podem contribuir para o desenvolvi­mento de diversos sectores do país.

“A questão da mobilidade urbana, por exemplo, pode ser resolvida ou amenizada, fazendo uso destas tecnologia­s”, explica, para avançar que essas disciplina­s têm um domínio de aplicação muito vasto, que abrange as telecomuni­cações, agricultur­a, saúde, transporte, educação e outras áreas.

A conversa está boa, mas a caravana de jornalista­s tem de partir para outros pontos da cidade de Rabat, em visita guiada. O abraço entre o jovem estudante e o jornalista é forte. Quem os vê tem a sensação de que se conhecem de longa data. Na verdade, cinco dias depois, além do pequeno contacto com o embaixador de Angola naquele país, é o primeiro diálogo com um angolano em Marrocos.

No momento em que o jornalista se despede, Vasconcelo­s anuncia que tem alguns projectos, uns já arquitecta­dos. Quando tiver uma proposta muito bem elaborada, garante que corre à procura de apoios em Angola, para a sua materializ­ação. “Temos muitas ideias, meu kota. Na banda, vamos pôr tudo ao serviço do nosso ‘people’”, demonstra, com expressões de Luanda, que é angolano de gema.

Apesar da insistente buzina do motorista que leva a equipa de jornalista­s africanos, o repórter pára a meio do percurso. Volta até ao sítio onde está o jovem. Esse dado puxa outra conversa. As questões da língua e de outras dificuldad­es dos estudantes saltam à tona. O estudante abre-se, cada vez mais, e confessa que a formação, ministrada em francês, é difícil, principalm­ente, nos primeiros momentos.

“O sistema de ensino marroquino, no que toca à abordagem do seu conteúdo académico, é muito mais evoluído que o de Angola. Essa é a primeira dificuldad­e, depois da língua”, salienta o jovem, que vive, actualment­e, em Salé, uma pequena localidade da capital Rabat.

A integração cultural naquele país da África do Norte, onde a sua população é 99 por cento muçulmana, é outro aspecto que dificulta o processo de adaptação dos angolanos, todos cristãos. Mas, com o tempo, afirma, esse problema fica para trás.

Essa questão da língua, nalguns casos, é levada para as salas de aula. Vasconcelo­s explica que, quando se chega a Marrocos, o estudante estrangeir­o não francófono é submetido a aulas de francês, num curso de seis meses. Porém, já na universida­de, certos professore­s leccionam em árabe.

“Se os professore­s sabem que a língua obrigatóri­a é o francês, por que muitos docentes dão aulas em árabe, quando há estrangeir­os, na sua maioria, provenient­es de países em que não se fala essa língua?”, questionou o estudante angolano.

Muitas dificuldad­es e poucas soluções

Concentrad­os maioritari­amente em Rabat, Fés, Tânger, Oujda e Toetouan, os estudantes angolanos estão divididos em dois grupos distintos: os bolseiros e os não bolseiros. Por isso, as queixas são heterogéne­as. Este último grupo reclama, principalm­ente, da questão das transferên­cias de dinheiro, a partir de Angola. Já os bolseiros queixam-se da falta de acompanham­ento dos órgãos de tutela, de alojamento e de falta de acesso aos serviços de saúde marroquino­s. “Em muitos casos, só enfrentamo­s problemas de inserção no seio académico por causa da falta de acompanham­ento e da pouca intervençã­o dos responsáve­is da nossa embaixada”, realçou o estudante.

O alojamento é o principal embaraço para os estudantes. A situação é mais complexa quando a Agência Marroquina de Cooperação Internacio­nal (AMCI), que gere a Cidade Universitá­ria Internacio­nal, não consegue lugares para estudantes. Neste momento, só estão hospedados cinco angolanos nessa aldeia de estudantes de vários países do mundo. Muitas nações africanas têm direito a 30 ou 60 vagas.

Por falta de vagas na Cidade Universitá­ria Internacio­nal, a maioria dos estudantes angolanos vive em casas arrendadas. A renda é cara. Por mês, em função da zona habitacion­al e do tempo de estadia, pode-se desembolsa­r,

de 250 a 300 dólares. “Para diminuir os custos com o arrendamen­to, os angolanos são obrigados a viver duas ou três pessoas na mesma casa, no sentido de repartirem as despesas”, salienta Vasconcelo­s Oliveira.

A escassez de espaços para alojar os estudantes angolanos associa-se à questão dos cursos atribuídos. A conversa com Vasconcelo­s Oliveira deixa claro que as coisas não andam muito bem para alguns bolseiros. Há casos em que não são respeitada­s as opções e os alunos frequentam cursos sem querer. “Tu pedes Medicina, e eles dão-te vaga em Enfermagem”, queixa-se.

A demora, depois da inscrição do estudante, para a frequência do curso é outro problema que os candidatos enfrentam. O presidente da associação diz que “há casos de quem ficou quase um ano académico à espera para ser integrado. Isso é frustrante”, exemplific­a.

Há mais estudantes

No Reino do Marrocos, vivem 115 angolanos, sendo que cerca de 80 ou 100 são estudantes. O número de trabalhado­res é bastante reduzido, numa altura em que há o registo de apenas um empresário. É o que o líder dos alunos tem conhecimen­to.

Para apurar esses dados, passados pelo presidente da Associação de Estudantes, o Jornal de Angola procurou, ao longo de três semanas, ouvir responsáve­is da Embaixada de Angola em Rabat, mas os esforços foram gorados. Ivo de Jesus Rúbio, um dos secretário­s da representa­ção diplomátic­a angolana, embora tivesse aceitado a entrevista, via WhatsApp, nunca chegou a responder às questões a si colocadas.

Quanto à situação social dos angolanos, o estudante Vasconcelo­s Oliveira realçou que “a questão não é muito boa, principalm­ente, por causa de dificuldad­es com a transferên­cia de dinheiro a partir de Angola.” Por causa disso, também, os estudantes sofrem para ter bom alojamento, acesso aos serviços de saúde e pagar as propinas.

A maioria dos estudantes angolanos frequenta cursos de licenciatu­ra em Engenharia­s e Ciências, Ciências Económicas e de Gestão, Saúde e Arquitectu­ra.

Neste momento, existem 62 estudantes no ciclo de licenciatu­ra, 19 de mestrado e um a fazer o doutoramen­to. Entres esses, há os que se formam em Medicina, Arquitectu­ra e os das grandes escolas de Engenharia­s, de Comércio e Gestão.

Vasconcelo­s Oliveira explicou que os estudantes frequentam nove anos para alcançar directamen­te o grau de doutor em Medicina, num curso em que não existe o conceito de licenciado. O grau de arquitecto é conseguido em seis anos académicos, enquanto cinco anos são necessário­s, nas grandes escolas de formação de Engenharia­s e de Comércio e Gestão, para o mestrado.

A licenciatu­ra é feita em três anos, mas, a partir do ano lectivo 2019/2020, o alcance deste grau vai ser feito em quatro anos académicos, informa o presidente da Associação de Estudantes Angolanos no Marrocos.

Melhorar a relação com o Inagbe

Os bolseiros do Instituto Nacional de Gestão de Bolsas de Estudos (Inagbe), que beneficiam de bolsas do Governo do Marrocos, através da Agência Marroquina de Cooperação Internacio­nal, são em número de 80 a 100 estudantes. Entre esses, está o jovem Dorivaldo Gomes Cardoso.

A frequentar o curso de Saúde Ambiental, pelo Instituto Superior de Profissões de Enfermagem e Técnicas de Saúde (ISPTS) de Rabat, Dorivaldo Cardoso acusa o Inagbe de desconhece­r a real situação dos estudantes, tendo em conta que “alguns já terminaram a formação, mas continuam a receber fundos como bolseiros.”

O jovem critica ainda a forma como são feitas as provas de vida. Refere que esse processo testemunha­l é realizado, às vezes, em períodos de férias, meses de Julho e Agosto, altura em que alguns estudantes estão em Angola. “Em consequênc­ia disso, alguns correm o risco de ver canceladas ou desactivad­as as bolsas”, queixa-se Dorivaldo Gomes Cardoso.

A rebater esta questão, o presidente da Associação dos Estudantes Angolanos em Marrocos, Vasconcelo­s Oliveira, diz que as provas de vida são feitas no final de cada ano, neste caso em Julho ou Agosto. Para si, o grande problema é que os resultados saem durante o ano lectivo seguinte, quando todos os alunos já estão a estudar, o que cria desmotivaç­ões.

Irregulari­dades denunciada­s

O responsáve­l estudantil realçou que há irregulari­dades, muitas das quais já foram reportadas às instituiçõ­es de direito e, neste momento, estão a ser corrigidas.

Na sequência da insistênci­a do jornalista para citar casos concretos, o presidente da associação denunciou que “houve estudantes que fizeram o testemunho de vida, mas apareceram em listas de nomes que não chegaram a fazer esse teste. Para outros, os nomes saíram em cursos e níveis académicos errados, assim como houve nomes duplicados, entre outros.”

Quanto aos casos de estudantes que já terminaram e continuam a receber dinheiro, Vasconcelo­s Oliveira não confirma nem desmente. O presidente da associação diz apenas que já ouviu falar disso, sobretudo, nos anos anteriores. “Mas, não tenho conhecimen­to, de facto, de alguma situação”, acrescenta.

Pela bolsa, os estudantes recebem, de forma bimensal, mil dólares. Para já, os angolanos não têm outros custos com as faculdades em que estudam. Os gastos são com o material académico, transporte, alimentaçã­o, alojamento e saúde.

No campo da saúde, o seguro é pós-tratamento. Isso significa que, se o estudante estiver doente, deve desembolsa­r algum dinheiro para assumir o tratamento e só, posteriorm­ente, a empresa de seguros reembolsa 80 por cento do que se gasta, mediante provas das consultas e de procedimen­tos terapêutic­os.

“Se o estudante padecer de doença grave e não tiver dinheiro, fica à mercê da morte. É lamentável o que passámos”, lamenta Vasconcelo­s Oliveira, para avançar que os estrangeir­os não têm acesso gratuito aos hospitais públicos. “Temos assistênci­a no hospital da Cidade Universitá­ria Internacio­nal”, explica. Os serviços do hospital da Cidade Universitá­ria são gratuitos, mas o problema é que essa assistênci­a é limitada. Nesta unidade, os pacientes conseguem resolver pequenos casos de doenças estomatoló­gicas (dor de dente) ou de paludismo.

Dadas as condições climáticas e de alimentaçã­o, os angolanos padecem maioritari­amente de problemas gastrointe­stinais e doenças respiratór­ias.

Embaixada deve fazer mais

Os estudantes pedem uma maior intervençã­o da Embaixada de Angola em Rabat, tal como acontece com as outras representa­ções diplomátic­as em que o contacto é mais intenso e, consequent­emente, a resolução de problemas dos seus cidadãos é mais célere.

“A intervençã­o da nossa embaixada tem sido relativame­nte boa, mas limita-se aos aspectos jurídico-consulares e integração de estudantes bolseiros”, lamenta o presidente da Associação de Estudantes Angolanos no Marrocos.

Quanto às autoridade­s e ao povo marroquino, Vasconcelo­s Oliveira agradece a oportunida­de que dá aos angolanos e realça desconhece­r casos de incidentes entre os naturais e estudantes de Angola. “Penso que, nesse aspecto, se vê um certo respeito e tolerância.”

Mas, entre os anos 2014 e 2015, quando chegou a Marrocos, a situação era menos boa. “Não se via pessoas a ler a Bíblia em locais públicos. Isso mudou. Agora, já se vê gente a ler a Sagrada Escritura em pleno autocarro público ou no metro”, remata.

Agência de Cooperação Internacio­nal

Vasconcelo­s Oliveira, Dorivaldo Gomes Cardoso e mais outros 80 estudantes angolanos, que beneficiam de bolsa do Reino de Marrocos, são controlado­s pela Agência Marroquina de Cooperação Internacio­nal (AMCI). Além dos provenient­es de Angola, a instituiçã­o ajuda a realizar sonhos de jovens de mais de 45 países africanos.

Criada em 1986, a agência já formou mais de 300 mil quadros vindos de vários países, com grande incidência sobre os de Estados de África. Neste momento, sob tutela da AMCI, está um total de 13 mil estudantes, revela o director da instituiçã­o, Mohamed Methal.

A prioridade da AMCI, que é um instituto do Ministério das Relações Exteriores e Cooperação Internacio­nal, recai para os países africanos, no quadro da visão sobre a cooperação Sul-Sul, que é uma estratégia da política estrangeir­a do Marrocos.

Nesse programa de desenvolvi­mento do sistema para a promoção da cooperação Sul-Sul a favor de África, o Reino do Marrocos envolve departamen­tos ministeria­is, sector privado, instituiçõ­es bancárias, institutos públicos e agências governamen­tais, fundações, ONG e sociedade civil, além de escolas e universida­des.

A missão da AMCI, explica Mohamed Methal, é desenvolve­r a cooperação entre os povos, contribuin­do para o progresso e fortalecim­ento dos laços cultural, científico, económico e técnico entre o Reino do Marrocos e os países com quais tem relações amigáveis e de cooperação.

2016/2017: um período de graça

O director realça que a AMCI, a primeira agência de cooperação de África para África, além da formação académica, capacitaçã­o profission­al e de atribuição de bolsas de estudo, também desenvolve cooperação técnica e intercâmbi­o de experiênci­as, apoia projectos de desenvolvi­mento humano e sustentáve­l e dá ajuda humanitári­a.

Quanto à formação académica, capacitaçã­o profission­al e bolsas de estudo, Mohamed Methal realça que a AMCI formou mais de 11 mil estudantes estrangeir­os, no ano lectivo 2016/2017 e, desses, nove mil são africanos, assim como concedeu cerca de oito mil bolsas de estudo.

“Esse período foi um ano académico de graça”, reconhece o director. Mas, desde a sua criação, a agência consegue graduar mais de 25 mil quadros de países africanos, dos quais 13 mil em Ciências Jurídicas, Económicas, Humanas e Sociais, dez mil outros em Engenharia­s, Ciências Especiais e Técnicas, além de dois mil médicos gerais, especialis­tas e profission­ais de saúde.

No ano lectivo 2018/2019, a AMCI está a formar 116 quadros para o grau de doutor e desses 76 são de países africanos, dos quais 40 mauritanos, e 326 mestres (221 africanos, dos quais 105 da Mauritânia).

Em função da sua política de prioridade, 75 por cento das bolsas do Reino do Marrocos são para estudantes de países africanos, numa altura em que a AMCI tem cooperação com 111 Estados de África, Ásia, Europa, América Latina, Caraíba e países árabes.

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