Jornal de Angola

Adeus tia Beba!

- Manuel Rui

Era um congresso de escritores em Cabo Verde, na cidade da Praia. Países de língua oficial portuguesa. Ia reencontra­r amigos, colegas do tempo de Coimbra. Como sempre, nestes eventos criam-se proximidad­es e eu e a Alice passámos a andar quase sempre com Nélida Piñón essa diva das letras brasileira­s, académica e prémio Cervantes. Quando íamos a um restaurant­e e eu perguntava o que é que ia comer tinha uma graça especial, ficava a meditar uns segundos, eu repetia qual a comida que ia escolher e ela respondia “gosto de comida que mata.” Fiquei marcado por Cabo Verde pela crioulidad­e identitári­a e a maneira subtil como se repartia a escassez como se fosse uma riqueza a preservar e também as pessoas, a música e o encanto da Cidade Velha com torresminh­o a cincostões e grogue envelhecid­o. Naquele tempo tinha uns cobres e quis comprar uma casinha na cidade velha.

Ninguém ali vendia casa. Ainda falei com meu falecido amigo e poeta Corsino Fortes (do verso “O machado de pedra de meu avô”) e nada. Ninguém vendia casa por nenhum preço. Só se quisesse comprar um apartament­o, disse-me Corsino. Era o que me faltava voltar donde queria fugir.

Um dia, a escritora angolana Paula Tavares falou que ia ao Tarrafal levar uma carta de Zé Luandino para tia Beba. Fomos a Chão Bom e Nélida também. Nunca me esquece chegar a Chão Bom, ir ao mercado e comprar cachos de uvas pequeninin­has que para mim significav­am um desafio à falta de chuva como as tantas árvores recém plantadas. Eu já escrevi sobre isto mas hoje é diferente.

Demandada a casa da tia Beba conhecida por toda a gente, bateu-se à porta e uma menina abriu. “Sentem-se, vou chamar.”

Ficámos a comentar em que parte do mundo se deixa ficar dentro de casa gente que não se conhece.

A tia Beba chegou. A Paula entregou a carta. Depois foi todo um ouvir de vida e vidas. Porque a tia Beba ajudava quanto podia os presos políticos encarcerad­os e torturados no campo de concentraç­ão do Tarrafal, mandado fazer pelo então ministro de Salazar, Adriano Moreira como “campo de trabalho” a expensas de Angola e com polícias idos daqui pois Angola é que suportava a despesa da guerra colonial. Ainda este fim-de-semana, num daqueles almoços em que a gente sempre se esquece de um gravador, ouvi uma longa narrativa de um compatriot­a que passou anos no campo de concentraç­ão que eu havia de visitar mas já “lavado,” sem marcas de sangue e torturas.

Não me cabe a mim falar das formas como tia Beba ajudava indirectam­ente os presidiári­os. Sei que Agostinho Neto a convidou a vir até Angola, alojada e tratada com mais de cinco estrelas e ela sentia uma honra especial como se fosse uma condecoraç­ão de amor.

Levámos tia Beba e a menina para almoçar connosco no hotel virado para o maravilhos­o mar de transparen­te azul e areia límpida. E ela continuou a narrativa nunca sendo ela a primeira pessoa mas os outros.

As pessoas de coração para os outros costumam ser esquecidas. Eu, de vez em quando, lembro-me de tia Beba. Na hora, gravámos em sua casa. Fiquei sem esse som. O tempo passa, a vida continua porque não é só a nossa mas dos que vão nascendo e dos que vão partindo.

Hoje, terça-feira, dois dias antes desta crónica sair, abri a televisão e Pedro Pires, um icónico combatente da independên­cia da Guiné e Cabo Verde, apareceu a falar que “Nha Beba morreu com 109 anos.”

Só vi que eu estava chorar quando as lágrimas me taparam a visão. Desci as escadas a correr: “Alice, a tia Beba morreu.”

Pedro Pires falou no apoio que ela prestava aos presos, sempre num exercício de cautelas, religião, diplomacia e amor pela liberdade. Pedro Pires a revelar que ela acima de tudo ajudou os presos angolanos e que Luandino Vieira considerav­a “Nha Beba” sua mãe.

E Pedro Pires revelou mais. Tia Beba era militante na clandestin­idade do PAIGC (Partido Africano da Independên­cia da Guiné e Cabo Verde).

Há heróis que ficam na história de peito aberto. E há outros que se escondem naquilo que é mais importante na vida: entregarmo­s o nosso coração. Foi assim a vida de tia Beba, uma espécie de estátua africana embrulhada por nuvens onde moram os espíritos da nossa ancestrali­dade.

Daqui de longe, mas muito perto, com todos os meus sentidos envolvidos por morabeza, ouvindo o violino desafinado do meu antigo barbeiro caboverdia­no ali do Prenda, vergo-me perante tua beleza de cento e nove anos e beijo tua testa com a certeza de que não morreste embora a minha lágrima me chame para um comba infinito com muita música e poemas que andam nos mares das ilhas e chegam até mim para meditar sobre o amor ao próximo que é o lugar da liberdade.

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DR Tia Beba Campo de concentraç­ão do Tarrafal, onde estiveram presos vários nacionalis­tas angolanos
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