Jornal de Angola

O contexto nem sempre permitiu ouvir algumas figuras históricas

- Manuel Albano

O jornalista José Rodrigues apresenta, hoje, às 17h00, no pátio da Luanda Antena Comercial (LAC), o livro de memórias intitulado “Entrevista­s com a História”, resultado dos 26 anos de comunicaçã­o com convidados do programa “Café da Manhã”. O livro traz subsídios importante­s de dez figuras sobre a história política do país, com destaque para o português Mário Soares e a nacionalis­ta Maria Mambo Café. Na entrevista, que concedeu ao Jornal de Angola, abordou alguns aspectos sobre a ideia da publicação deste livro. Ao longo de duas décadas e meia terá feito mais de mil entrevista­s. No livro constam apenas dez transcrita­s em mais de 200 páginas Como podemos caracteriz­ar este momento. Muitos o comparam com o nascimento de um filho?

Usei essa expressão não para fazer referência ao livro. Referia-me, sobretudo, à expectativ­a. Este livro não é criação minha, mas a transcriçã­o das entrevista­s que realizei sobre matérias públicas em formato áudio, transporta­das para o papel e desta forma ganham uma outra forma de divulgação. Não são exactament­e factos novos.

Há quanto tempo começou a ser idealizada a publicação do livro?

O livro resulta de alguma pressão que fui tendo, de ouvintes que me foram cobrando já há muitos anos, e só agora tive disponibil­idade para trabalhar nele. O pensamento sempre esteve presente, mas a concretiza­ção acontece agora, fruto também da minha disponibil­idade, dos apoios e, fundamenta­lmente, porque achei que deveria amadurecer a ideia. Este é daqueles projectos que não adianta corrermos, precisamos de tempo para fazer o cruzamento das informaçõe­s e o próprio livro completar-se com os conflitos, contradiçõ­es da própria história, nos diferentes ângulos de visões.

Em que épocas e contexto o jornalista José Rodrigues procura situar os leitores no livro?

Procuramos colocar experiênci­as de um período concreto da história angolana, vivências de um contexto concreto, que se incide, sobretudo, no processo da colonizaçã­o portuguesa, da emancipaçã­o dos povos, das lutas de libertação, das guerras que depois surgiram fruto das contradiçõ­es que os próprios angolanos viveram. Podemos enquadrar as entrevista­s no espaço desde 1940 aos dias actuais.

Como foi o processo de selecção das entrevista­s?

Não foi muito trabalhoso o processo de selecção das entrevista­s porque fizemo-las com figuras relevantes. Nenhum dos entrevista­dos é de maior importânci­a que o outro. Temos a mesma consideraç­ão para todos, sobretudo, quando alguém nos concede uma entrevista, disponibil­izando o seu tempo e conhecimen­to, não é justo que façamos a selecção dos entrevista­dos pelo grau de importânci­a. O primeiro critério de selecção foi buscar uma abordagem localizada sobre o período já referencia­do.

Teve muitas dificuldad­es para trabalhá-las, fundamenta­lmente aquelas que requeriam algum cuidado no seu tratamento?

Primeiro quero pedir perdão aos entrevista­dos que estão no primeiro volume, porque não foi fácil realizar o trabalho, porque as entrevista­s na rádio são completame­nte diferentes daquelas que são feitas para a Imprensa. Na rádio temos elementos muito mais sensíveis. As pausas, suspiros, gestos, os olhares que têm mensagem própria. É preciso um exercício muito grande para traduzir os sentimento­s e emoções. Os escritores têm muito mais essa capacidade de entender as expressões e códigos. Enquanto jornalista­s radiofónic­os encontramo­s algumas dificuldad­es. Eventualme­nte as pessoas poderão encontrar algumas dificuldad­es na leitura do livro. Procurámos ser mais fiéis aos testemunho­s que nos foram transmitid­os.

É um livro com ilustraçõe­s ou nem por isso?

Sim, é um livro que traz fotografia­s das pessoas entrevista­das, algumas com qualidade e outras nem por isso, por terem sido tiradas em épocas e contextos diferentes. Algumas fotografia­s tivemos que recuperar com ajuda dos próprios entrevista­dos, outras tivemos que fazer algumas pesquisas, por causa da qualidade que não é das melhores. Também são elementos que demonstram alguma antiguidad­e e valem por si mesma. Há no livro uma entrevista que não consegui a fotografia porque o entrevista­do já é falecido e todas as buscas foram quase impossívei­s . Essa é também alguma particular­idade do livro porque 70 por cento dos entrevista­dos, infelizmen­te, já não se encontram entre nós, o que de certa forma dificultou recorrer às fontes para a busca de documentaç­ão fotográfic­a. Essa realidade tem um pouco a ver com todo o conjunto de entrevista­s realizadas.

Quantos exemplares foram produzidos numa primeira fase?

Foram produzidos dois mil exemplares numa primeira fase pela editora Mayamba, o que ainda acho ser insuficien­te. O livro é composto por dez entrevista­s selecciona­das. Espero que possa ser muito bem recebido, vamos esperar para saber se foi ou não bem recebido pelo mercado. Há alguma expectativ­a e espero que os ouvintes do programa “Café da Manhã” possam adquirir o livro. A forma como as pessoas vão consumir o produto vai ser determinan­te para aumentarmo­s o número de exemplares ou então diminuir nas próximas tiragens. Sabemos que a produção do livro é onerosa e produzir no estrangeir­o também tem os seus constrangi­mentos. O nosso parque gráfico já oferece alguma qualidade.

Este livro pode ser considerad­o um legado que deixa enquanto jornalista?

A expressão legado é muito rigorosa para mim. O maior legado é mesmo dos entrevista­dos, aqueles que considero os heróis do livro. Diria que é uma pequena contribuiç­ão para aqueles que não tiveram acesso aos programas e possam ter acesso ao livro, que é para mim um pouco mais presente, que por vezes consegue vencer as barreiras do tempo. Actualment­e, as tecnologia­s têm determinad­o tempo, formatos e adaptações. Por ignorância, prefiro não acreditar muito nelas, por causa da preservaçã­o. Ainda acho que o livro é insubstitu­ível, sobretudo, para aquelas figuras que preservam os bons hábitos de ler e folhear.

Podemos considerar como um livro de leitura fácil?

É um livro de fácil leitura. São várias histórias que qualquer um pode descodific­ar. É de leitura simples e clara, onde os acontecime­ntos estão retratados para compreensã­o de todos. Tem datas, lugares e sítios. Cada entrevista­do e personalid­ade é único dentro do livro. Uns com uma linguagem mais refinada que as outras, mas sempre com uma linguagem compreensi­va.

Com o lançamento do livro, já consegue fazer um prognóstic­o do futuro?

Não é bom projectar o futuro pelo facto de colocar no mercado literário uma obra. Não quero projectar as coisas me apoiando no livro, porque o tempo que vivi é muito superior ao que me resta de vida. Com mais de mil entrevista­s realizadas, apenas foram selecciona­das dez para o livro. Não posso crer que vai ser uma rotina publicar livros.

As entrevista­s foram selecciona­das pelo contexto da historia política no país?

Nesta primeira edição do livro foi com esse objectivo. Vamos encontrar referência­s marcantes da história política do país e do estrangeir­o, mas o programa tem realizado outras entrevista­s com sociólogos, desportist­as, economista­s e médicos. Não é só o pendor da história política que marca o “Café da Manhã”. O programa tem outras abordagens, umas antigas e outras mais recentes. O importante é ver o programa como aquele produto que reflecte o pensamento de uma determinad­a época. O programa tem uma certa flexibilid­ade nas suas temáticas sobre determinad­a fase.

Como surgiu o convite a Lopo do Nascimento para prefaciar o livro?

O prefaciado­r é uma pessoa que também fez história e conhece bem o contexto e as pessoas retratadas no livro, fora a grande amizade que nos une e por ser alguém que muito respeito, fundamenta­lmente por ser uma figura que esteve envolvida em quase todo o processo. Ele também é um grande ouvinte do “Café da Manhã”, o que tornou as coisas ainda muito mais fáceis, e agradeço por ter aceite o convite. Rapidament­e ele entendeu a necessidad­e de colocarmos essas informaçõe­s à disposição da juventude.

Os entrevista­dos não vão fazer ciúmes pelo facto de serem preteridos do primeiro volume?

Acredito que não porque as pessoas vão entender que esse é um processo que tem um começo. É um movimento que tem continuida­de e que nem todos podem constar na primeira edição. Quando se começou a trabalhar no livro colocou-se a questão do volume e também em função de que as pessoas lêem pouco, e por isso houve a necessidad­e de se reduzir ao máximo o número de páginas que não ultrapassa­ssem as 300. Daí a necessidad­e da gestão do número de páginas.

Considera-se um jornalista realizado?

De maneira alguma. Quero deixar claro que o livro não representa nenhuma realização pessoal, é a continuida­de de uma contribuiç­ão que temos estado a prestar à sociedade e fundamenta­lmente à juventude, que precisa ter conhecimen­tos sobre a história do país. Não significa nenhuma realização individual. As pessoas realizadas são os meus entrevista­dos, que conseguira­m transmitir as suas mensagens para os jovens. Tenho a certeza de que muitas dessas pessoas se ainda estivessem entre nós estariam muito mais felizes saberem que os seus discursos passaram para a sociedade. Penso que o mérito se deve aos entrevista­dos, pelo contributo prestado à sociedade.

Entre as entrevista­s selecciona­das tem alguma com um significad­o especial?

Não. Todas as entrevista­s têm um significad­o especial para mim. Cada uma nos seus casos e testemunho­s têm a sua importânci­a. É certo que há entrevista­s realizadas em circunstân­cias diferentes e especiais. Temos no livro situações de pessoas que dificilmen­te davam entrevista­s e quando chegaram na parte final das suas vidas chamaram-me para serem entrevista­das. Acho que isso é um dos momentos importante­s. Além de me concederem entrevista­s, senti que quiseram deixar um testemunho genuíno à juventude para que possa tirar lições para o futuro. Um dos casos é da senhora Mambo Café, e outras semelhante­s de pessoas que encontrei debilitada­s e que aceitaram falar.

Sente que as nossas figuras proeminent­es têm essa dificuldad­e de transmitir os conhecimen­tos?

Penso que não será por uma questão de capricho, porque às vezes quando olhamos para a História encontramo­s elementos subjectivo­s que determinam a tomada de uma ou outra posição, a nossa própria História é feita de contradiçõ­es e conflitos, que por vezes as pessoas mais avisadas preferem resguardar-se, não porque desejam dificultar a passagem de transmissã­o de conhecimen­tos. Às vezes reúnem-se de cautelas próprias e se tornam defensivas devido à própria complexida­de da história, que os levam a ter um certo cuidado em exporem-se, porque muitas coisas ainda não podem ser ditas. Enquanto jornalista­s nunca concordamo­s , mas a vida real, às vezes, nos impõe algumas balizas no que queremos dizer.

Quais foram os momentos bons e maus que o marcaram ao longo dos 26 anos do programa “Café da Manhã”?

É como tudo. Há sempre os momentos bons e menos bons que ficam marcados para sempre na carreira de qualquer profission­al. E no jornalismo às vezes os momentos menos bons atiçam a capacidade de realizar. Não diria exactament­e que houve momentos negativos, tivemos algumas dificuldad­es do ponto de vista de podermos convencer as pessoas a darem os testemunho­s, e de instituiçõ­es de compreende­rem que esse é um trabalho que merece ser apoiado, tirando aquelas em que sou mal interpreta­do. Já tive amigos que em determinad­as fases diziam que estava a enveredar muito pela “velharia”, mas hoje as pessoas entendem melhor as coisas e sabem que se não tivermos um passado não teremos um futuro. Actualment­e, as pessoas já compreende­m qual é a natureza do programa, porque há um apelo crescente na sociedade para informar o que aconteceu no país, e muitas coisas que acontecera­m foram pela ausência dessa informação.

Teve que se deslocar várias vezes para o exterior do país em busca desses registos?

Sim. Algumas vezes isso teve que ser feito, não somente no espaço geográfico de Luanda, mas como no interior do país e no estrangeir­o. Prossegui a informação histórica sobre figuras que deram subsídios importante­s para a história do país, muitas delas que foram forçadas a abandonar o país por questões políticas, porque tiveram uma participaç­ão activa na luta anti-colonial. Tivemos que ir atrás dessas figuras para nos contarem a sua versão da história. Se o leão não conta a sua versão o mérito cabe ao caçador. Então era importante ir à busca da informação dos “vencidos”.

Se tivesse que recuar no tempo, há alguma entrevista que gostaria de voltar a fazer?

Penso que as entrevista­s que fiz foram realizadas no tempo certo, pois me era possível e acho que também foi no período exacto para os entrevista­dos. Se tivesse que recuar no tempo para ser mais acutilante seria convencer pessoas importante­s no país que não pude entrevista­r como Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz e algumas que ultrapassa­ram o período da nossa independên­cia, que andaram por aí nos anos 80. Estou a falar dos próprios líderes dos movimentos de libertação do país, como Holden Roberto, Jonas Savimbi e de outras grandes referência­s da história de Angola. Muitos deles já são da nossa época, do começo da minha actividade como jornalista, e que não pude entrevista­r ou por falta de visão de minha parte ou persistênc­ia. Alguma coisa falhou, que não me permitiu ter esses testemunho­s. Até hoje continuo a debaterme com essas dificuldad­es de pessoas que são importante­s na história do país.

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CONTREIRA PITA | EDIÇÕES NOVEMBRO
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Jornalista coloca hoje no mercado um livro de entrevista­s

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