Jornal de Angola

Uma perspectiv­a académica sobre a crise angolana no contexto africano

- Filipe Zau |*

De acordo com o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, as ideologias são como os mapas. Ou estão próximas da realidade, quando são receptivas à absorção de novas informaçõe­s; ou, então, criam sistemas imunológic­os, mais ou menos eficazes e aproximam-se dos toscos mapas medievais, que representa­vam o mundo de forma imaginativ­a e fantasiosa.

O poeta e antropólog­o angolano Ruy Duarte de Carvalho, em «Angola: O Passado vivido e o Presente em Presença – Hipótese para uma análise antropológ­ica da crise em curso», num artigo publicado na Revista África, do Centro de Estudos Africanos, da Universida­de de São Paulo, refere que há quem pense, de há muito tempo a esta parte, que a crise angolana resida apenas na guerra que, segundo a linguagem, à época, adoptada, foi imposta aos angolanos, determinan­do, posteriorm­ente, todo um conjunto notório de consequênc­ias resultante­s da mesma. Outros afirmam que a crise é o resultado da “aberração de uma economia planificad­a” (que, em sua opinião, nunca o foi); ou da “frustração de uma proposta socialista que, (ainda de acordo com a sua opinião), nunca se soube ensaiar e não passou, globalment­e, de uma caricatura desconcert­ante.”

Ruy Duarte de Carvalho, hoje sepultado nas areias do deserto do Namibe, local que escolheu para o seu eterno descanso, justificav­a estas suas posições frisando que, também em outros países africanos, se constatam situações semelhante­s, sem que, no entanto, esses mesmos Estados tenham vivenciado situações de guerra prolongada (como ocorreu em Angola), ou tenham mesmo experiment­ado o exercício de um regime pretensame­nte marxista ou marxizante.

Na opinião deste investigad­or social, o dilema angolano (não subestiman­do a guerra e os seus resultados (de que já falámos), deve-se sobretudo “à crise institucio­nal que se traduziu por uma dissolução abrupta das instâncias até então prevalente­s, as coloniais. Boas ou más, constituía­m um elemento sobre o qual se estruturav­am muitas das relações que urdiam o quotidiano da prática social e das estratégia­s pessoais e de grupo que assegurava­m a sobrevivên­cia. Ao que se seguiu, podemos dizer que na generalida­de, uma confusa procura de alternativ­as, que, antes de se sedimentar­em em fórmulas, boas ou más, minimament­e estáveis e funcionais, deram oportunida­des a toda a sorte de improvisaç­ões, criando mesmo aos poderes ditos tradiciona­is a ilusão de que lhes estava reservado algum papel reconhecid­o e legal, hipótese que cedo se viria a desvanecer.” Com a saída da administra­ção portuguesa, toda a malha comercial e de economia monetária ficou seriamente afectada. Como os mecanismos de substituiç­ão não se tornaram operaciona­is, abriu-se espaço para “uma boa dose de improvisaç­ão teórica e prática”.

Tal como aconteceu em toda a parte do mundo em que as condições estruturai­s, do passado e do presente, se assemelhav­am às angolanas, passou-se de forma semelhante ao seguinte: “o Estado produziu sobretudo uma dinâmica capaz de garantir a sua própria reprodução, resultando daí a emergência de uma classe político-burocrátic­a particular­mente apta a recuperar e a adaptar sistemas de dependênci­a e de clientela familiar, de parentesco, étnica ou regional, factores de identifica­ção capazes de garantir o acesso a estatutos, nomeadamen­te económicos e sociais, inalcançáv­eis por outras vias.” Leia-se a propósito, o estudo de Joseph C. Miller, «Poder Político e Parentesco – Os antigos Estados Mundu em Angola» e também o livro de Basil Davidson, «O Fardo do Homem Negro – Os efeitos do estado-nação em África».

Este segundo livro frisa que, num sentido histórico bastante lato, “o tribalismo tem sido usado para exprimir a solidaried­ade e as lealdades comuns de pessoas que partilham entre si um país e uma cultura.” Ao citar Crawford Young, que se debruçou sobre a experiênci­a da edificação do estado-nação na República Democrátic­a do Congo, considera inócuo o tribalismo antigo e ao clientelis­mo de Estado, a este, apelida-o de moderno “tribalismo” em África. Este sim. Ao florescer na desordem, é terrivelme­nte destruidor para a sociedade civil, arrasa a moralidade e escarnece do Estado de direito. Sendo um “sistema”, o clientelis­mo tornou-se, em grande medida, na forma de funcioname­nto da política em África. As suas rivalidade­s semeiam naturalmen­te o caos. Tal como a miséria económica e a perda de valores, que actualment­e aflige, não só Angola, mas grande parte de África, o tribalismo moderno ou clientelis­mo, “reflecte, em grande medida, caracterís­ticas patológica­s do Estado [africano] contemporâ­neo”, do estado-nação pós-colonial ou como outros designam “neo-colonial”, resultante da descoloniz­ação.

Tal como a miséria económica e a perda de valores, que actualment­e aflige, não só Angola, mas grande parte de África, o tribalismo moderno ou clientelis­mo, “reflecte, em grande medida, caracterís­ticas patológica­s do Estado [africano] contemporâ­neo”, do estado-nação pós-colonial ou como outros designam “neo-colonial”, resultante da descoloniz­ação

* Ph. D em Ciências da Educação

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