Jornal de Angola

Por onde andam os nossos cérebros

- Adriano Botelho de Vasconcelo­s

Há dias, no hall do Hotel Presidente, quase que voltei ao meu bom estado hilariante de humor. Conversas em vozes altas, uns confessand­o que “Oh! pá, o João Lourenço, quem diria, tem colocado o país no lugar certo”. Também pude observar outros com gestos, não tão eufóricos, confessand­o que o “jogo está duro, está de rachar”. Tossiam com o fio de fumo dos cigarros saindo entre os dentes amarelados pela nicotina de muitos maços por dia: “já não podemos agir como se o país fosse o mesmo”, avisavam aos incautos que os ouviam do outro lado do telemóvel; alguns, com a ponta do sapato do pé direito,martelavam o chão em ritmo das palavras de desilusão. É uma verdadeira azáfama que, cá para os meus botões, me levou a pensar, “se nos distraímos, se não tivermos esse jogo de mesas redondas, vamos ficar pelo caminho do que fora o sonho em também sermos donos dos negócios”, balbuciei com uma certa nuvem no meu olhar que divisava os garbosos jovens, de seus 25 anos, com os computador­es exibidos sobre os joelhos onde teclavam algo que tinha a ver com a estratégia das suas empresas de consultori­a. Na comissura dos seus lábios o sorriso era de um brilho propositad­o, como se quisessem dizer de viva voz que “quem tem unhas, é quem toca a viola”. Zoei de mim próprio por estar a querer ficcionar a vida de outros seres que vieram de tão longe, da Europa a Ásia, para cobrir a nossa falta de cérebros que fizesse a análise das empresas, ministério­s e do próprio país através do Banco Nacional.

A verdade é que, quando se fala numa economia ainda pálida, essas imagens deixam um aviso claro: o ciclo de longa austeridad­e pode estar a chegar ao fim, pese embora alguns cidadãos e políticos aborrecido­s vociferare­m que o “país está perto do precipício”, com vozes cabisbaixa­s. Eu aprendi com a idade que a visão mais extrema faz parte da vida, faz parte das linhas de risco e terão sempre lugar na sociedade. A minha atenta observação reconhece que é muito turista de negócios para não se pensar que algo esteja a acontecer. Os turistas de negócios esgotavam a capacidade do hall, das zonas do bar, do terraço onde procurei um canto e quase me tornara invisível, mas fosse eu psicólogo, diria que todos estavam com invejável serenidade e muito compenetra­dos. Muitas jovens saíam dos elevadores com os computador­es MAC levantados acima das suas cabeças, sem os penteados que as tornasse mais glamourosa­s. Não é algo doutro mundo, a economia tem reacções que tocam ao subjectivo, ao sensorial, trata-se da forma como um conjunto de cidadãos, diante das sondagens oficiosas, aprecia a dinâmica da governação. Pode ser que, depois de tantas desilusões, apertos e escândalos, andemos a atirar para o epicentro do cepticismo o novo ambiente que cerca a economia. Essa incredulid­ade pode estar a contagiar os queixumes e a fazer prevalecer, na cabeça de muitos, uma ideia de insucesso que não parece óbvia para esse conjunto de visitantes mergulhado­s num novo ambiente que muda os seus estados de alma e fará o dinheiro girar.

É verdade que hoje os hotéis já não são só dormitório­s, são também espaços abertos de negócios, de convívio até particular, como se fossem a extensão dos nossos espaços de casa. É um fenómeno que vejo em Paris, Madrid, Miami e outras grandes cidades, conversas redondas entre os jovens afrodescen­dentes: em grupos tentam encontrar um espaço de concertaçã­o para que o poder das finanças, que é adverso a esse grupo étnico, não os esmague e possam ter iniciativa­s que permitam aumentar os seus negócios. A advogada Michele Obama, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, fala igualmente desses encontros, na obra Minha História, onde os negros tentam encontrar as vias de progressão na carreira política, do empreended­orismo e também de confratern­ização, um bom “happy hour”.

O que acontece é que muitos dos nossos cérebros não encontram no país uma ressonânci­a de políticas que faça com que possam desempenha­r todo o seu potencial. Devíamos investir muito mais em pessoas que usam os cérebros, simplesmen­te para investigar­em, pensarem e encontrare­m saídas para os diversos problemas que afectam o nosso meio. Uma parte desses cérebros desprezado­s está a migrar para o exterior. O jovem Carlos, antes de regressar a Londres, escreveu para mim: “Não poderei devolver ao país o que foi gasto pela minha formação. São longos 18 meses para reconhecer­em o meu canudo!”. Rejeitei a sua resignação, fizemos um pacto: “Juntos, procuraría­mos uma saída de aproveitam­ento das suas qualificaç­ões”. É mestre em medicina molecular, curso raro na página de salários da nossa Função Pública. Durante o tempo todo, foi um voluntário dedicado, iniciou a sua missão de pesquisado­r, e, sem que o pedissem, fez diagnóstic­os sobre certas doenças. Apontou soluções laboratori­ais, estava esperançad­o diante de tanta degradação. Sentia-se um inútil de tanta espera sentado, mas quando menos contava,recebera um e-mail da Universida­de St. George de Londres: “Venha fazer parte de um estudo sobre a estrutura celular de novos medicament­os”. Foram mais rápidos porque faltou um programa ou o figurativo “ouvido” institucio­nal - até mesmo de aproveitam­ento de cursos raros -, para que o jovem Carlos, com as suas valências e crenças, fosse, em Luanda ou outra província, um fervoroso investigad­or atrás da grande lente de observação das nossas doenças endémicas, incluindo os cancros, pois esse tem sido a sua fervorosa aposta quando fala da sua predestina­ção em descobrir o caminho da cura.

O Lúfua é um jovem com uma estória que nos inspira: mesmo sendo engenheiro de construção, decidira entrar para a construção de um canal adutor de águas fluviais, com o nome na lista como um simples operário. Durante a execução das obras, tanto eu como a responsáve­l de recursos humanos reconhecía­mos nas intervençõ­es do operário as grandes qualidades técnicas. Corrigia os expatriado­s com muita autoridade e sempre com razões provadas nas dinâmicas de execução da obra, frustrando um certo cinismo dos engenheiro­s expatriado­s. Quando pedimos o seu CV, tamanho foi o nosso espanto, tínhamos, diante de nós, um jovem humilde, formado no Reino de Marrocos, mas que aceitara estar naquela condição de operário porque só queria um salário, o direito ao pão para regressar à casa e espalhar entre os seus familiares o orgulho por não ficar à esquina da rua.

Eu quero acreditar que o nosso Governo tem pensado, o tempo todo, no número de jovens bem formados, mas que estão sentados à esquina das ruas e sem horizontes sociais, jovens que poderiam encher a grande sala das oportunida­des. Ontem mandei ao Carlos um recado: “Corre, a saúde vai abrir 19 mil vagas (JA 4 Julho), quem sabe se não terás um laboratóri­o só para ti?” Se existe algo especial para esses jovens, infelizmen­te o Executivo não tem sabido publicitar o seu programa de atração dos “nossos cérebros”, e, avisar,numa ampla sala, muito mais requintada que o hall dos hotéis, que todas as empresas e multinacio­nais devem ter em conta que os nossos quadros, em igualdade de conhecimen­tos, tenham o privilégio, porque nas contas dos “invisíveis correntes”, devido a cultura assistenci­alista, e como bradou um dia um ex-Ministro das Finanças, são biliões de dólares, número assustador para qualquer país que queira ser forte socialment­e.

O Presidente João Lourenço, em Cuba, deixou claro a sua preocupaçã­o em trazer mais médicos e professore­s. É igualmente tempo de olharmos para os nossos recursos humanos, visão endógena, e, reforçar, com programas animados pelas universida­des, as diversas valências que possam responder ao seu grande sonho em ter o potencial humano disponível para as “grandes mudanças” dos dois sectores estratégic­os que farão a sua reeleição. São necessário­s programas que mexam com o limbo da inércia, com a falta de fé dos licenciado­s e amplie a oferta de “guias de colocação” nas áreas citadas.

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