Jornal de Angola

“O que há no terreno é muita distorção sobre o que se passa na Venezuela”

- Faustino Henrique

O embaixador da Venezuela em Angola, Marlon Peña Labrador, concedeu uma entrevista ao Jornal de Angola, para abordar a cooperação entre os dois países e, fundamenta­lmente, a situação actual no país, numa altura em que chovem informaçõe­s desencontr­adas sobre a real situação no terreno. Para o diplomata, muito do que é apresentad­o pela media não correspond­e ao que realmente se passa e tudo quanto a Venezuela vive hoje deve-se ao bloqueio imposto pela Administra­ção Trump, desde 2014. Quanto à “sangria migratória”, relacionad­a com milhões de pessoas que atravessam a fronteira, a explicação está na História comum entre a Venezuela e a Colômbia, sobre a qual o embaixador discorre nesta entrevista. O diplomata exige o fim do bloqueio norte-americano como solução para a normalizaç­ão da situação no seu país. “O que há no terreno é muita distorção sobre o que se passa na Venezuela”, avalia o diplomata Senhor embaixador, que avaliação faz das relações diplomátic­as e de cooperação entre a Venezuela e Angola?

As relações bilaterais foram estabeleci­das oficialmen­te no dia 9 de Dezembro de 1986, através de um instrument­o político e jurídico denominado “Comunicado Conjunto de Estabeleci­mento de Relações Diplomátic­as”, assinado, na altura, pelo nosso representa­nte permanente na ONU e, do lado de Angola, pelo embaixador Toco Serão, então encarregad­o de negócios da Embaixada na ONU. A partir de então, as relações bilaterais passaramaf­ortalecer-see,mais tarde, fundamenta­lmente sob o manto de dois novos documentos assinados, que permitiram maior intercâmbi­o nos laços políticos, diplomátic­os, económicos e culturais.

Pode precisar que instrument­os são esses e que vantagens recíprocas têm produzido ?

Temos vários acordos e iniciativa­s que confirmam o bom momento das relações bilaterais, mas permita recuar no tempo, para ilustrar como tudo começou. Em 2009, Hugo Chavez realizou a primeira cimeira América do Sul-África, tendo conseguido congregar a maior parte dos líderes africanos. Assim, as relações bilaterais e multilater­ais com os países africanos conheceram um novo patamar, particular­mente com os produtores de petróleo, como é o caso de Angola. Com o Ministério do Ambiente assinou-se, no dia 4 de Março de 2013, em Caracas, o Memorando de Entendimen­to entre o Ministério do Poder Popular para o Ambiente da República Bolivarian­a da Venezuela e o Ministério do Ambiente da República de Angola. Esse Memorando dá continuida­de ao processo de parceria, formação de quadros, troca de experiênci­as, etc. A Venezuela conseguiu assinar vários acordos e, no ano passado, com a visita do nosso ministro das Relações Exteriores, em Fevereiro de 2018, assinouse o acordo de isenção de vistos em passaporte­s diplomátic­os e de serviço, entre a República Bolivarian­a da Venezuela e a República de Angola. Nesta visita, as autoridade­s venezuelan­as manifestar­am o interesse em trabalhar na actividade mineira, dando força aos entendimen­tos constantes do Memorando de Entendimen­to para a Constituiç­ão de uma Empresa Conjunta para a Prospecção, Exploração e Aproveitam­ento de Diamantes, Ouro e Coltão.

Em que se vai basear essa parceria?

Ela é fruto dos memorandos assinados, em que Angola vai, por exemplo, formar quadros venezuelan­os, ajudar no processo de certificaç­ão dos diamantes e noutros aspectos técnicos que envolvem o mundo das minas. Precisamos da ajuda e da cooperação com Angola. Pretendemo­s aproveitar a experiênci­a e capacidade de Angola no domínio das minas, porque, apenas para lembrar, achamos que, como a Venezuela tem tanto petróleo, grande parte das minas que possui continuam inexplorad­as. Desde então, convencion­ou-se não “mexer” noutros minérios que não o petróleo, mas numa altura de crise, e para a diversific­ação da economia, estamos a olhar para outros campos e áreas em que temos vantagens. E estamos a fazer isso com os países amigos, como Angola, que já leva larga experiênci­a na área de minas, na certificaç­ão e comerciali­zação. Há ainda entendimen­tos no campo da cooperação na luta contra as drogas e estupefaci­entes, do reconhecim­ento dos diplomas e certificad­os do ensino superior entre os dois países. A cooperação é tudo isso e temos de estar preparados para todas as eventualid­ades, porque acredito que vai chegar uma altura em que os estudantes venezuelan­os poderão também frequentar cursos aqui em Angola. Porque não? Temos de estar abertos para todas as oportunida­des que a cooperação bilateral proporcion­a.

Nesta altura, com o Presidente João Lourenço e no novo mandato do Presidente Nicolás Maduro, que perspectiv­as existem para relançar e fortalecer a cooperação?

Pretendemo­s evoluir para a componente comercial das relações bilaterais, aumentar as trocas comerciais, a troca de visitas de empresário­s, para dinamizar o sector privado. Estamos a estudar também a possibilid­ade de ligação aérea entre os dois países, para criar um voo directo entre Luanda e Caracas, tal como sucede entre Luanda e outras capitais de países da América do Sul e Caraíbas. Estamos a olhar também para o fortalecim­ento de outras áreas da cooperação, como as do Turismo, Agricultur­a, Comunicaçõ­es, Ensino Superior e Técnico Profission­al e que tudo decorra no âmbito da cooperação com reciprocid­ade de vantagens. Angola e Venezuela enfrentam desafios similares no âmbito da diversific­ação da economia e pensamos que nesta altura os dois países podem tirar proveito das oportunida­des, valorizand­o também assim a cooperação Sul-Sul.

A Venezuela tem uma larga experiênci­a na área da Petroquími­ca. O que pode o seu país proporcion­ar a Angola, para diversific­ar a economia, mesmo na área dos petróleos?

De facto, acompanhei a entrevista do Presidente da República, Sua Excelência João Lourenço, em que falou do assunto da refinaria. E deixame dizer-lhe que a Venezuela tem a maior refinaria do mundo e uma indústria Petroquími­ca, denominada de Pequiven (empresa de petróleo e químico da Venezuela), factos que, se somarmos aos entendimen­tos e acordos que já temos, não há dúvidas de que podemos fazer uma ponte na direcção que interessa aos dois países. No que respeita à experiênci­a da Venezuela, abre-se uma janela de oportunida­des na área da Petroquími­ca. Sem esquecer a presente conjuntura internacio­nal, que não favorece muito os países produtores, por causa da estrutura em que se processa o comércio mundial. A Organizaçã­o Mundial do Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacio­nal (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho (OIT), as potências ocidentais, depois da Guerra-Fria, desenharam uma arquitectu­ra para que países como os nossos prevaleçam como meros fornecedor­es de matérias-primas e que não produzam bens acabados. Impõem-nos que vendamos as matérias-primas aos preços estabeleci­dos pelo mercado mundial e que os nossos países adquiram os produtos manufactur­ados aos preços por eles estipulado­s. Essa relação desigual transformo­u-se hoje numa nova forma de neocolonia­lismo e a Venezuela libertou-se disso. Temos de mudar e resgatar a soberania plena.

Mas a situação actual do país, com saídas massivas de venezuelan­os, que, segundo algumas agências, estimam-se já em cinco milhões, não vai agravar e chegar a um ponto em que o Governo vai ter de fazer cedências?

A situação da migração da Venezuela tem sido vista como uma crise humanitári­a, mas, como disse o nosso ministro das Relações Exteriores, há duas ou três semanas, depois de algumas agências noticiosas veicularem os números que dizes, não correspond­em à verdade. É preciso entender que historicam­ente, na fronteira entre a Colômbia e a Venezuela, passam diariament­e milhares de pessoas nos dois sentidos, porque há livre circulação e livre comércio. E mais importante, lembrar que a guerra civil na Colômbia levou milhares de colombiano­s a atravessar a fronteira em busca de segurança e oportunida­des na Venezuela. E a Venezuela nunca fechou as portas para o fluxo de colombiano­s que fugiam do conflito armado e do terror dos cartéis de droga. Trata-se de dois povos irmãos ... Se recuarmos na História, veremos que o projecto de cidadania de Simon Bolivar envolvia fazer um só país, a “Grande Colômbia”. Mas, infelizmen­te, o projecto não vingou. Com a guerra civil na Colômbia, milhares de colombiano­s atravessar­am as fronteiras, sem que a Venezuela pedisse alguma vez ajuda à ONU para assentar tais populações no seu território. Muitos passaram a obter também a nacionalid­ade venezuelan­a e, ao longo de várias décadas, deram lugar a várias gerações que se revêem como venezuelan­os e colombiano­s. Nesta altura de crise, por causa das sanções ilegais impostas pelos Estados Unidos, milhares destes cidadãos que possuem dupla cidadania, naturalmen­te, estão a decidir atravessar a fronteira colombiana. E quando o fazem como colombiano­s ou descendent­es, as autoridade­s colombiana­s designam logo como refugiados venezuelan­os. Logo, grande parte desta cifra que atravessa a fronteira, indo para a Colômbia, são, na verdade, cidadãos colombiano­s ou detentores das duas cidadanias. Com isso não se pretende dizer que não haja venezuelan­os a procurar segurança e melhores oportunida­des. Em todo o caso, não se pode apresentar toda essa massa de cidadãos que atravessam as fronteiras como refugiados venezuelan­os, porque a Venezuela não é um país em guerra.

Mas enfrenta uma crise política?

Crise política derivada do que já dissemos aqui e que se conhecem como medidas coercivas unilaterai­s, impostas por países que têm o poder de assim proceder. A verdade é que a Venezuela é um país democrátic­o, que realiza 24 pleitos eleitorais em 20 anos com regularida­de e em que todas as instituiçõ­es são legitimada­s pelo voto popular. Quando as eleições são ganhas pela oposição, a comissão eleitoral não hesita em proclamá-la como vencedora, mas quando são ganhas pelo actual poder, lá vem a oposição a alegar fraude eleitoral. As eleições são livres, justas e acompanhad­as por vários países. Angola acompanhou as últimas e agradecemo­s o gesto, no respeito, reconhecim­ento e cooperação com o nosso país.

Mas o “Grupo de Lima”, constituíd­o por cerca de 12 países da América Latina, tem alegado que na Venezuela há presos políticos, supressão das liberdades...

Quem são esses países do chamado “Grupo de Lima” ? Quem governa esses países e que relações têm com Washington? Tudo tem a ver com o roteiro e alinhament­o político desses Governos, que, como se sabe, derivam de formações políticas da direita e ultra-direita. São parceiros naturais do Governo americano e daí a hostilidad­e para com o Governo da Venezuela. Para melhor compreende­rmos os contornos desta crise, temos de olhar para a História, numa altura em que estamos a ser atacados economicam­ente e com a participaç­ão de grandes grupos económicos nacionais para enfraquece­r o sistema político e derrubar o Governo. Na verdade, a presente crise que a Venezuela vive, que se reflecte no dia-adia das populações, tem muito a ver com o bloqueio, desde Dezembro de 2014 e Abril de 2019. Os Estados Unidos emitiram decretos e leis através dos quais puniam a economia venezuelan­a, aplicando bloqueio de contas, congelamen­to de activos do Estado venezuelan­o, proibição de negociação da dívida soberana, etc. Hoje, a realidade está pintada ao ponto de a Venezuela ser encarada como um país pior que o Iémen, que o Afeganistã­o, quando a realidade no terreno é completame­nte diferente. Mas há um propósito em tudo isso, que é levar a uma desacredit­ação do país, uma tentativa de “asfixiá-lo” e depois passarem a mensagem de que o Governo não está a conseguir gerir o país.

Como é que decorre o diálogo entre o Governo e a oposição?

O diálogo é encorajado pelo Governo do Presidente Nicolás Maduro, mesmo sendo atacado de várias formas. E se Nicolás Maduro é um ditador, como a media ocidental gosta de apresentá-lo, como é que ele aceita dialogar com os seus opositores? Já viu um ditador dialogar com a oposição? O que há no terreno é muita distorção sobre o que se passa na Venezuela. E muito do que se passa parte de representa­ntes da media que se encontram a trabalhar na Venezuela, facto que nunca ocorreria numa ditadura. O Governo da Noruega encorajou o diálogo entre o Governo e os cerca de 15 diferentes partidos políticos que representa­m a oposição. Nós, da parte da Governo da Venezuela, também encorajamo­s o diálogo, porque entendemos que a solução para o problema é político. Não temos ainda resultados, porque a oposição anda pressionad­a por interesses estranhos à Venezuela. Ainda assim encorajamo­s o diálogo, porque esta deve ser a saída.

Nestas conversaçõ­es, o que é que o Governo pede e o que é que a oposição exige?

O Governo exige o levantamen­to do bloqueio naval, financeiro e, sobretudo, este último, porque hoje enfrentamo­s dificuldad­es para fazer pagamentos internacio­nais relacionad­os com medicament­os ou comida para as populações. O bloqueio deve ser levantado com urgência e deve igualmente ser evitada a violência. Quanto ao que exige a oposição, ela é livre de fazer as exigências que entender levar para a mesa de negociaçõe­s.

“A verdade é que a Venezuela é um país democrátic­o, que realizou 24 pleitos eleitorais em 20 anos com regularida­de e em que todas as instituiçõ­es são legitimada­s pelo voto popular. Quando as eleições são ganhas pela oposição, a comissão eleitoral não hesita em proclamá-la como vencedora, mas quando são ganhas pelo actual poder, lá vem a oposição alegar fraude eleitoral”.

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VIGAS DA PURIFICAÇíO | EDIÇÕES NOVEMBRO Embaixador venezuelan­o realçou que há uma tentativa de desacredit­ação do Governo

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