O caminho da igualdade está no berço
Estive em Toronto, uma cidade que é cercada pelo lago de águas doces que tem o tamanho de quase um oceano. Há vinte anos escrevi um poema sobre esse lago. Sempre penso que quando o mundo secar, por conta do sol abrasivo e do nosso desleixo ambiental, os seus lençóis de água pura manterão com vida essa cidade. Na verdade, será o último lugar da terra com água e flores. Durante a minha viagem familiar, fiquei deveras impressionado com as conversas mantidas com o meu neto, o Tcheize. Ele tem 10 anos, mas já se dá conta dos meandros da política governativa. Sempre que eu procurasse elogiar Toronto, seu encanto e nível de segurança, por andarmos até tarde e em qualquer lugar, ele, num instante, apoiado em argumentos fortes, desfazia a minha boa impressão. De forma muito cirúrgica, argumentava que o senhor Primeiro-Ministro só sabe viajar e que esse dinheiro todo, bem somado, enquanto “grande desperdício”, poderia servir para melhorar o ensino e a saúde, “áreas que perderam peso orçamental”, explicou.
Mais: discorria sobre as estatísticas à volta dos impostos altos, que dizia, num tom sereno, “serem responsáveis pela falta de investimentos” das empresas e afiançava ser uma opção política que tem “causado os níveis altos de desemprego”. Para provar o seu ponto crítico, apontava para os pobres a dormirem na calçada, mesmo à frente das entradas imponentes do Scotia Bank. Traduziu para mim os gritos de um “homeless” (sem-abrigo), que, no meio da estrada, gritava aos condutores: “Eu já não gosto do Canadá” e num cartaz escreveu: “Salve-me com algumas moedas. Estou desgraçado”. Aliás, é já uma característica que se nota à entrada de muitas estações de Metrô e praças públicas, onde os “homeless”, que não existiam em tão grande número, fazem discursos corrosivos contra os impostos altos – recebendo ovações e incentivos dos transeuntes que paravam os passos para matar o tempo - e comparam de forma crítica o actual estilo de governação com os anteriores governos trabalhistas, que têm sido afastados pela força do voto.
Um certo dia, pediu que parássemos na Indigo, loja cultural que faz sucesso. Percorreu os livros de infância e escolheu uma obra com mais de 177 páginas. Pensei nos meses que levaria para ler: “boa trabalheira”. Logro meu, durante o percurso pelos comboios e autocarros em passeio, fazia a leitura, muito concentrado. Os seus dedos ágeis mudavam as páginas como se fossem as folhas das árvores no Outono a se desprenderem dos seus ramos. O movimento dos utentes, entrando e saindo, o burburinho, não o perturbavam. “Terminei”, disse, esticando o corpo. No seu olhar, um brilho de viajante de novos mundos.
Um amigo meu, igualmente pai de uma criança de sete anos, contou que o seu filho, de nome Jerson Mukaia, muitas vezes divagava sobre as coisas reais, intervaladas com as suas fantasias. Juntava às representações teatrais as experiências no moldar no barro as máscaras. Potenciava a sua maior expressividade nas plasticinas que, parecem molhadas, quando se lhes toca, são fáceis de ser manuseadas, tal como as crianças idealizam os objectos.
“O Jerson tem uma grande facilidade de mudar os seus estados de alma”, confessou com alegria. Contou que num lindo sábado, no quintal, estavam todos à volta da máquina de lavar a roupa. O pai pediu ao filho que ajudasse a mãe a organizar a roupa. Que separasse as cores em pequenos montes distintos, para que depois ficasse tudo mais fácil. Assim, a mãe colocaria a lavar a roupa sem os riscos de debotar e manchar as peças de cores mais leves. A criança, com toda a calma do mundo, ripostou que ficaria sentado sobre a trouxa de roupa, descansando, como fazem os presidentes que “só sabem mandar”.
Esse é um fenómeno quase mundial. Assistese ao crescimento precoce das crianças. Andam muito atentas ao mundo que as rodeia e querem ter voz própria, ter presença, algo que vai mudar para melhor as sociedades. Nada que agrade aos defensores de uma sociedade agrilhoada. Vejamos: estava eu bem refastelado na cozinha a ver a televisão, o noticiário das 20h na TPA, quando passaram imagens do ministro da Justiça e do seu homólogo americano, os dois debruçados, um à frente do outro, a assinar as últimas páginas do Acordo de Parceria Estratégica. O jornalista explicou que o acordo permitiria aos Estados Unidos ensinarem ao Executivo angolano as nobres matérias sobre os direitos humanos e de tolerância.
O meu filho, de 8 anos, virou-se para mim, e, com voz triste, afirmou “que estamos sempre à procura de quem nos ensine a governar. O que se passa, papá?”. O Nano tinha razão, não é uma matéria que os Estados Unidos nos possam ensinar, porque, disse ele, “lá se matam os justos e os pecadores” com a mesma facilidade. Eu peguei no meu telefone e enviara uma mensagem para o meu confrade de escrita, o também ministro da Justiça, replicando as palavras do meu filho, dizendo que nós, angolanos, depois do que sofremos, estamos em melhores condições de ajudar o Governo americano na grande missão de tornar a sua sociedade mais compaginada aos valores de humanização, evitando-se o mero exercício de força contra os “afros”, uma questão sempre presente nos noticiários.
Se pais e mães, mesmo aqui em África, têm todos as mesmas visões ardentemente defendidas pelos pedagogos que consideram útil ter um subsistema de pré-escolar forte, amplo e universal, não entendo por que não colocar em prática essa medida. Não tendo nada de despesista, só vai permitir que todas as crianças, sem excepção classista, possam ter um crescimento harmonioso, que desperte as suas habilidades e carácter. Esse desiderato, infelizmente, parece não ser algo prioritário às políticas governativas de quase todos os países africanos. E temos nas suas estatísticas um número explosivo de crianças sem beira nem eira, até parece que os políticos usam as borrachas para que esse cenário não faça parte das preocupações oficiais. O nosso país, Angola, há muito que está incluído nesse défice por não ter essa ambição, o que, ao continuarmos assim, vai gerar uma incapacidade em sermos donos das nossas transformações sociais e tecnológicas que se impõem.
Às vezes perdemos muito tempo em querer identificar as correntes de esquerda nos seios dos partidos do arco governativo, mas num ambiente de tamanho nível de miséria e ignorância, onde todos os dias crescem as estatísticas que demonstram existir mais gente a cair na indigência, como ondas eternas de um mar revolto, esse é um esforço inócuo. Eu defendo que as zonas periféricas das grandes urbes, tão densamente povoadas de crianças, fossem o laboratório social de uma nova era. Sem o poder radical socializante, pudessem ter no terreno das zonas mais paupérrimas os programas mais exigentes de criação de estruturas do subsistema, capazes de mobilizar as famílias mais pobres a deixar as suas crianças, a partir dos três anos, bem entregues aos professores dos jardins de infância.
O Presidente João Lourenço, de braços abertos e firmes, ao segurar a mão de duas crianças de batas brancas que mudavam de uma escola degradada, com bancos de latas de leite, para uma melhor escola, com tudo que possa existir de melhor, deu um sinal claro de que o seu Executivo aceita, como parte estruturante, o acesso de todas as crianças angolanas às melhores condições. Não temos outra saída política, se quisermos um país diferente.Temos que buscar uma visão que, de uma vez por todas, ataque a causa mais importante das fraquezas do país: a exclusão infantil. As crianças, nas periferias, e não só, por conta do caos que se alastra, estão muitas horas úteis fora do ambiente escolar, sem a força educativa familiar.
Essa triste realidade e condição, infelizmente, torna-os pequenos “actores da vida” que os levará a uma condição de negação do futuro.