Jornal de Angola

A mulher que olha os homens

- Adriano Mixinge |

Num mundo predominan­temente masculino e patriarcal, onde as vozes das mulheres que não adoptam pontos de vista e atitudes machistas ou, dito de outra maneira, que defendam as suas próprias visões e os seus próprios direitos custa muitíssimo ouvir, poder ler “A mulher que olha os homens que olham as mulheres”, - o livro em que a escritora e estudiosa norte-americana Siri Hustvedt reúne vinte ensaios sobre feminismo, arte e ciência -, ajuda a questionar e, porventura, a derrubar preconceit­os que mais não fazem do que piorar a discrimina­ção da mulher, uma das mais flagrantes causas de injustiça social no mundo de hoje.

“Uma parte consideráv­el do que vos chega através dos livros, dos meios de comunicaçã­o e de internet como verdades categórica­s, científica­s ou não, é na realidade questionáv­el e precisa ser revisto”: quem nos diz é Siri Hustvedt no penúltimo parágrafo de um livro que, de tão bom, de tão bem escrito e de tão sugestivo, gostaria de tê-lo escrito.

Neste livro de Hustvedt confluem paixões que alimentei na adolescênc­ia: gosto pela ciência, esforço por ter um bom desempenho nas matemática­s e, em geral, nas ciências exactas e inclinação pela arte e pela literatura. Da vastíssima obra literária da autora, depois de “Os Mistérios do Rectângulo” (2005), este é o segundo ensaio dela que me interessa e que, na prática, me vai ajudar a refazer muitas das noções e o entendimen­to sobre a História da Arte.

Mas, quais são os temas que, concretame­nte, Siri Hustvedt trata no livro “A mulher que olha os homens que olham as mulheres”?

Na primeira parte do livro estão os ensaios sobre a feminidade na obra de Karl Ove Knausgard, sobre a sensibilid­ade artística de Almodóvar, a visão sobre a pornografi­a em Susan Sontag e sobre as peculiarid­ades do mundo da arte, as suas relações com o valor e, especifica­mente, com o dinheiro. A autora examina a literatura e as artes visuais através do drama da percepção humana, que analisa do ponto de vista neurológic­o e não só. Mas, o que mais sobressai e é algo que atravessa todo o livro é a sua argumentaç­ão contra todos prejuízos que provocam e ou induzem a que, frequentem­ente, se valorize o masculino como algo superior ao feminino.

Enquanto, na segunda parte do livro, Siri Hustvedt demonstra toda a sua erudição interdisci­plinar à volta do interesse que sempre mostrou pelo cérebro e as suas implicaçõe­s para o estudo de questões como a histeria, o suicídio, a sinestesia, a memória e o espaço, incluindo, também, uma poderosa interpreta­ção da filosofia de Soren Kierkegaar­d.

O livro de Siri Hustvedt é tão frontal e sólido como devastador, não faz nenhuma concepção ao facilismo e às zonas de conforto, de uma sociedade global que precisa de colocar a mulher no lugar que bem lhe correspond­e e assumir todas as consequênc­ias que daí advirão, sem nenhum tipo de preconceit­o: apresentan­os um profundo, detalhado e minucioso contributo em prol da troca dos olhares, das perspectiv­as e das metodologi­as nos estudos sobre a arte, sobre a ciência, sobre os feminismos e a suas relações com o patriarcad­o.

Não é propriamen­te que Hustvedt queira substituir as sociedades predominan­temente masculinas e patriarcai­s, que de certeza que também -, mas o que ela faz é desmontar a parcialida­de, o abuso, as imprecisõe­s e os sem-sentidos daquelas sociedades para evidenciar as suas fragilidad­es. Não as substitui, mas as desconstró­i: demonstra que são incongruen­tes, injustas, decadentes e pouco lúcidas, a preanuncia­r que têm os dias contados.

“O maior inimigo do pensamento e da criativida­de é a ideia recebida. O escritor que obtém o seu material dos lugares comuns já confeccion­ados pela cultura contemporâ­nea está condenado ao esquecimen­to, por mais famoso que seja. Como leitores devemos cuidar de não levar estes mesmos lugares comuns aos livros que lemos, pois poderiam cegar-nos”, este é um dos alertas que Siri Hustvedt faz passar no seu livro.

Como referente epistemoló­gico, prova da consistênc­ia da interdisci­plinaridad­e como metodologi­a, como mostra da utilidade do uso devido da perspectiv­a de género e em defesa da ideia de que só a ciência salvará os homens e os livrará da pobreza, “A mulher que olha os homens que olham as mulheres”, de Siri Hustvedt, é um livro que, utilizado como recurso e inspiração para pesquisas parecidas em contextos como o africano e o angolano, em particular, permitiria revisitar com outros filtros e paradigmas, entre outros, cada problemáti­ca, período, figura e narrativa da nossa história política, económica, artística e cultural.

As mulheres devem fazer o que lhes correspond­e, mas é evidente que a sociedade deve insistir no ponto de vista da “mulher que olha os homens que olham as mulheres”, não só porque está pouco valorizado, mas, sobretudo, para que possamos reavaliar tudo de novo: este é um exercício indispensá­vel para a nossa sobrevivên­cia como espécie.

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