Dom Afonso I, o Apóstolo do Congo
A história dos reinos e dos impérios negros de África comporta, ainda hoje, muitas sombras e lacunas. A vida e, em seguida, a morte deste ou daquele reino, o desabrochar e, depois, a queda brutal deste ou daquele império são-nos em grande parte desconhecidos. Os motivos são os mais diversos. Quando muito, os Estados africanos que viram a luz do dia no decurso da Idade Média apenas deixaram raros arquivos, parciais e muitas vezes incompreensíveis. E ainda, a maioria destes Estados nem sequer dispunham de arquivos. As outras fontes, sejam elas escritas ou orais, frequentemente são imprecisas e até incoerentes; torna-se necessário interpretá-las e rectificá-las continuamente.
“A história da África medieval”, escreve o grande arqueólogo Henri Lhote, “está repleta de obscuridades, tacteamentos e incertezas. Só as futuras descobertas arqueológicas nos permitirão, talvez, preencher as consideráveis lacunas dessa História da Idade Média”.
Foram os portugueses os primeiros europeus a terem contacto com o Congo, em 1482, o segundo reino ou império das savanas do sul, que se estendia pelo Oeste do actual Congo até ao rio Cuango, Gabão e pela actual Angola.
A história do Congo medieval foi marcada pela excepcional personalidade do Rei D. Afonso l, o Grande. Convertido em 1492 ao cristianismo pelos missionários portugueses, teve o privilégio - segundo afirma a tradição - de contemplar a Virgem e São Tiago. Animado de uma extraordinária devoção religiosa, era, ao que parece, um bom teólogo. Implanta - parcialmente - o cristianismo no Congo, edifica numerosas igrejas na sua capital, Mbali, depois rebaptizada S. Salvador, com o auxílio de pedreiros e carpinteiros enviados pelo rei de Portugal, D. Manuel.
Dispomos de abundantes testemunhos sobre as qualidades excepcionais deste ‘Apóstolo do Congo’ - cuja autoridade é respeitada pelo rei de Portugal -, deixados pelos capuchinhos e pelos embaixadores portugueses que com ele contactaram.
Numa carta dirigida ao rei de Portugal, a 25 de Maio de 1516, Rui de Aguiar evoca a erudição e a fé do soberano congolês: “quanto às suas qualidades de cristão, sabei que me parece, pela forma como fala, que não se trata de um homem mas sim de um anjo, enviado pelo Senhor a este Reino do Congo para o converter; pois asseguro-vos que é ele quem nos instrui e que conhece melhor do que nós os Profetas, os Evangelhos de Nosso Senhor Jesus Cristo, todas as vidas de Santos e todas as coisas da nossa Santa Madre Igreja (... ), pois nada mais faz do que estudar e muitas vezes lhe acontece adormecer sobre os Livros Santos; outras vezes, esquece-se de comer e de beber, para falar nas coisas de Nosso Senhor”.
Um historiador da época, João de Barros, o “Tito Lívio português”, pinta D. Afonso nestes termos:
“Dom Afonso deu provas não apenas das virtudes de um príncipe cristão, mas desempenhou o papel de autêntico apóstolo, evangelizando e convertendo pessoalmente grande parte do seu povo (...). E, para melhor exercer este mister de pregador, aprendeu a ler a nossa língua; estudava a vida de Cristo e os Evangelhos, as vidas dos Santos e tudo o mais da doutrina católica, com o auxílio dos nossos padres e explicava tudo àquele povo.
Enviou para Portugal os filhos, netos, sobrinhos e alguns jovens nobres, para aprenderem a ler não só o português mas também o latim e os textos sagrados”.
Para melhor converter e evangelizar, D. Afonso utiliza por vezes meios pacíficos. Numa carta endereçada ao rei de Portugal - redigida em latim, como todas as outras cartas de D. Afonso enviadas ao monarca de Lisboa -, datada de 5 de Outubro de 1514, pede que lhe envie “algumas bombardas e outras armas de fogo, para poder queimar uma grande casa de ídolos... pois se a queimasse sem o auxílio dos cristãos portugueses arriscava-se a perder a vida”.
Como as armas não chegaram a tempo, explica o soberano congolês numa carta ulterior, teve de queimar a casa “o mais secretamente possível”.
Este ligeiro incidente prova que, apesar dos esforços do Rei, os pagãos continuam a ser numerosos no Congo”.
Em todo o caso, profunda e sinceramente cristão, D. Afonso procura manter com os portugueses as melhores relações possíveis.
Por outro lado, graças ao auxílio destes, espera elevar o nível intelectual e económico do seu povo.
É neste espírito que o soberano resolve construir uma escola, onde deverão ser instruídos quatrocentos jovens. O ensino é assegurado por quatro padres portugueses. Mas estes recusam permanecer no Congo por mais tempo e cedo exigem a sua repatriação. Em Portugal, a situação é igualmente difícil para os jovens príncipes negros enviados a Lisboa. Numa carta dirigida ao Rei do Congo, o soberano português queixa-se da sua indisciplina e da sua falta de interesse pelo trabalho. Na resposta, datada de 27 de Maio de 1517, D. Afonso declarase muito penalizado pelo comportamento dos membros da sua família.
“Eles devem ser”, recomenda, “castigados e corrigidos, pois é pelo trabalho que se alcança o reino dos céus”.
Mas todos estes pequenos problemas são solucionados, visto que D. Henrique, filho de D. Afonso, se torna bispo de S. Salvador. Em 1529, o rei de Portugal manda informar que se encarregará da educação de doze jovens congoleses. Segundo um historiador da época, o erasmiano Damião de Góis, “muitos estudantes congoleses saíram letrados dos conventos e das casas de pessoas sábias e piedosas, encarregadas da sua instrução, e tais que, mais tarde, ali pregando a fé católica”.
Após anos de reformas e de intercâmbio com os europeus, será o balanço final positivo para o Congo e para os congoleses? No que se refere ao auxílio técnico e material pedido por D. Afonso ao seu “irmão” de Portugal - é sempre assim que ele se refere ao rei nas suas cartas -, o balanço é fracamente magro: os poucos pedreiros, telheiros e carpinteiros enviados para o Congo acabam por se dedicar ao tráfico de escravos.
As cartas de D. Afonso mostram-no bastante chocado pelo “comportamento interesseiro, leviano e insolente” dos portugueses residentes no território.
O mesmo se passa no domínio da religião. A atitude dos europeus para com os negros transforma-se completamente no decurso do século XVI. Deixam de confiar na evangelização dos negros pelos negros. Numa carta dirigida ao rei de Portugal, afirma-se que os congoleses, “embora dóceis, precisam de se submeter a uma autoridade para serem bem convertidos, porque, sem sujeição, nem eles nem qualquer outro povo bárbaro, por predisposto que esteja, conseguirá manter a fé: bem se vê no Congo, onde o cristianismo evoluiu tão mal”.
O desprezo que os portugueses manifestam cada vez mais abertamente para com os negros leva D. Afonso, já idoso e cansado, a concluir que Lisboa e o seu “irmão” se tinham esquecido dele. Em Dezembro de 1540, é vítima de uma tentativa de assassínio por parte de alguns portugueses, “unicamente”, escreve o pobre rei a 17 de Dezembro de 1540, “para que eu desapareça e possam impor um rei da sua escolha”.
Nos últimos três anos do seu reinado, D. Afonso vê assim instalar-se a suspeição e a desconfiança entre os portugueses e o seu povo. Morre em 1543, deixando o reino à beira da crise.
“Dom Afonso deu provas não apenas das virtudes de um príncipe cristão, mas desempenhou o papel de autêntico apóstolo, evangelizando e convertendo pessoalmente grande parte do seu povo”