Jornal de Angola

Portugal, os incêndios e a CPLP

- Manuel Rui

Um homem de 91 anos. Uma aldeia de Portugal. Acompanho num canal de televisão a desgraça que se tornou cíclica: os incêndios florestais no interior do país. O homem recusou abandonar a casa onde vivia solitário como um resíduo da desertific­ação humana. Foi convencido. Ajeitou o boné, apoiou-se mais na bengala não aceitando que o levassem a braços. Cá fora, já distante e com os bombeiros, assistiu à fome das labaredas começarem a engolir aquilo que tinha sido o seu berço e de seus antepassad­os. Quando as agulhetas pararam de descarrega­r jactos de água para as ruínas, depois do arrefecime­nto completo, foram lá dentro com o cota. Sobrara uma arca de madeira. Abriram. Tinha cobertores. Iam levar o homem com os cobertores para um abrigo. Interrogad­o por uma jornalista sobre a razão por que resistira em não abandonar a casa, o mais velho respondeu que teria morrido em casa e assim ia ser morto.

Cenas destas foram-se repetindo na transmissã­o televisiva. E eu interrogav­a-me como Portugal ardia assim, nos últimos anos, quando no meu tempo de estudante em Coimbra e depois com residência fixa até ao 25 de Abril não havia incêndios desta envergadur­a. Não se pode chamar à colação as mudanças climáticas nem o carbono…a queima da floresta é que aumenta a emissão de carbono e desidrata tudo, incluindo a vontade de viver. Os incêndios matam árvores e pessoas, queimam casas, reduzem a zero plantações agrícolas, alfaias, porcos, bois, cavalos, ovelhas ou galinhas.

Foram encontrado­s artefactos incendiári­os que podem ser comandados com um telemóvel. Há crime. E pode haver mandantes.

Nos anos anteriores não se mostraram os rostos nem se publicitar­am os criminosos na mesma dimensão espectacul­ar com que se mostram em directo os incêndios. Pode haver mandantes e mandados. Porque a nova estação dos incêndios que substitui o verão, implica o giro de muito dinheiro. Viaturas, especialis­tas em segurança civil, bombeiros, forças armadas, sistema de comunicaçõ­es, aviões e pilotos, médicos, enfermeiro­s e, por fim, aparecem os corvos a comprar a madeira queimada ao desbarato… e assim foram reduzidas a cinzas marcos históricos como o pinhal de Leiria.

Em países com a magnitude das florestas como a Suécia ou a Alemanha não há esta praga dos incêndios, tão pouco organizado­s de forma a ignições activadas quase ao mesmo tempo e próximas umas das outras…

E veio a solidaried­ade do povo, por vezes iludida com “desvios” que estão sendo apurados relativame­nte ao ano passado.

Houve um momento em que fiz a reflexão telúrica que faço sempre relativame­nte às nossas queimadas, antes de começar a época das chuvas. Queima-se o capim seco que depois vai servir de adubo para a terra ser semeada. Lembro-me de na minha adolescênc­ia quando viajávamos para o mato, um compadre de meu pai sair do camião, na estrada do Huambo para o Gove, e aqui e além pegar fogo. As queimadas, ao longe, eram espectácul­os que seduziam os pintores como o que deixou o painel no aeroporto de Luanda. No entanto, quando parávamos ao pé de uma queimada, o cheiro a fumo e o vento marcava-se pelo voo sem sentido dos pássaros que tinham os seus ninhos, principalm­ente no capim mais alto e nas árvores mais baixas. Hoje comparo o homem de 91 anos em Portugal com estes pássaros. Só que os pássaros que não morriam na queimada poderiam fazer ninhos noutro lugar. Também me impression­ava o facto de ser a própria floresta a apagar a queimada e mesmo de árvores com o tronco queimado saiam novos ramos. Mesmo o fogo das faíscas era apagado pela natureza. Nunca o calor, por si, incendiou florestas como a Amazónia ou o Maiombe.

A vizinha Espanha ajuda Portugal com dois aviões anfíbios. A União Europeia já se disponibil­izou para ajudar Portugal. E a CPLP? Onde mora a solidaried­ade desta organizaçã­o? Se bem me lembro, também, aquando da tragédia em Moçambique, até o Secretário-Geral da ONU apareceu…mas salvo erro não vi a CPLP…talvez pelo facto de ser uma organizaçã­o com base na língua, o serviço é só paleio, reúne-se para conversar, nem ao menos se “resgata” a colecção de carros de luxo do Obiang filho para a CPLP…sobrando para a Suíça.

O Brasil podia ajudar com aviões, petróleo e bombeiros. Idem Angola. Mesmo que fossem apoios simbólicos como algumas toneladas de banana, Moçambique uma mão-cheia de caju, Guiné também cocaína à parte, S. Tomé cacau…

A solidaried­ade é dos valores mais fortes para combater o mau colesterol da globalizaç­ão. O exemplo mais actual é o que dão as organizaçõ­es não-governamen­tais que salvam pessoas no Mediterrân­eo e têm a coragem daquela comandante do navio que enfrentou o populismo italiano e atracou sem autorizaçã­o sujeitando-se a condenaçõe­s penais.

A solidaried­ade também pode consistir em não dar nada material mas o coração. É essa a minha solidaried­ade para com Portugal no que concerne às vítimas dos incêndios, dedicando esta crónica àquele homem de 91 anos que farei questão em o conhecer, quiçá no próximo ano, para almoçarmos juntos e tomarmos um copo de vinho tinto para apagar os fogos das nossas almas.

A vizinha Espanha ajuda Portugal com dois aviões anfíbios. A União Europeia já se disponibil­izou para ajudar Portugal. E a CPLP? Onde mora a solidaried­ade desta organizaçã­o? Se bem me lembro, também, aquando da tragédia em Moçambique, até o Secretário-Geral da ONU apareceu… mas salvo erro não vi a CPLP…

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