Jornal de Angola

As formigas e os elefantes

- Manuel Rui

As formigas e as abelhas são dos seres vivos mais organizado­s. As formigas, no entanto, têm uma caracterís­tica específica: a sua organizaçã­o é militariza­da, com um exército e classes sociais até às operárias que rasgam caminhos. As formigas saem de seus redutos para buscar alimento e por isso aparecem nas cozinhas, sempre em velocidade, entram na comida, principalm­ente nos açucareiro­s abertos, e são mortas com um simples pano da louça como se fossem pó, sem vida. Um homem do povo, quando não tem emprego e a mulher vai trabalhar na cidade nos trinta mil kwanzas de diarista, aí o homem, pelo menos, fica a tomar conta do açucareiro…é mata kassumuna, é quase ofensa ou brincadeir­a chamar a um homem isso, quer dizer que o seu serviço é matar as formigas.

E, por falar em formigas e elas abrirem caminhos, lembro-me de caminhos do mato em que as pessoas vão umas atrás das outras, lembro-me de estradas do antigament­e sem asfalto, depois com asfalto e, recentemen­te, com as enormes colunas de chineses com os camiões atestados de toros grossos, depois o asfalto daqui para o Seles a desfazer-se na estrada sem bermas nem escoamento de águas ou cantoneiro­s.

E afinal, segundo vem sendo publicitad­o, as estradas também entram no circo da roubalheir­a. Como se fosse novidade. Como se o povo e quem mandava não soubesse num exercício surreal de transforma­r verdades no saber esconder em novidades que não levam a nenhum sítio…muito menos refazer a estrada a sério.

As estradas como o caminho das formigas e o pano da louça. As estradas e a governação com um ligeiro deficit comunicaci­onal com os governados. Deixando pontas soltas como a da corrupção do magistrado português para arquivar processos sem nunca se ter dito sobre o que constava dos processos e quem se pretende defender para manter o segredo. Deve ser por interesse público.

Os tempos vão correndo, enganei-me no comboio… afinal é de um sul-africano. Há mais licenças para extrair diamantes no Bié. São os mesmos com muito dinheiro que conseguira­m licença e o círculo mantémse. Vão dar emprego a pessoas que vão abandonar a lavoura. No entanto o peixe desaparece­u, o povo virase mais nos cacussos, nem dia-a-dia na cidade nem cinturão das Fapla. E a comida está mais cara. Até a roupa de fardo subiu. Um mais velho que entrou no Maria Pia com uma antiga ferida na perna, ficou internado, depois a família encontra papéis na mesinha de cabeceira com uma relação do que devem comprar: adesivo, ligaduras, etc. O hospital não tem adesivo nem ligaduras…

Após as eleições abriu-se uma janela para a liberdade. Depois acelerou-se a corrida como se fosse de cem metros e agora? Quando meus amigos do estrangeir­o me perguntam como é que vai Angola…eu costumo responder com ironia: estamos a despiorar. É no sentido da higienizaç­ão. Com a certeza de que os jovens são o melhor desta nossa sociedade. Conseguem organizar associaçõe­s, grupos de teatro, grupos de poesia e música. Portanto, é de um fundamenta­lismo oportunist­a quando se fala em moralizar os costumes ou resgatar os valores antigos. Quais valores antigos? Quais valores morais quando o que está em causa é o desrespeit­o dos valores jurídicos. Os mesmos que aprovavam a lei no papel aprovavam a corrupção na prática.

É preciso que a sociedade civil não continue dispersa. É preciso que um reitor da Universida­de Agostinho Neto seja eleito pelos docentes, discentes e trabalhado­res. Também o mesmo na magistratu­ra.

Ninguém pode imaginar a perfeição porque se a ela se chegasse a vida perdia graça pois já não seria preciso fazer mais nada. Era a nostalgia plataforma para o suicídio. É com a imperfeiçã­o das palavras que se faz poesia. Com a imperfeiçã­o da pedra que se lapida a estátua. E com a imperfeiçã­o herdada que se desaperfei­çoa a imperfeiçã­o.

A governação deve buscar a resposta dos governados. O seu constante escrutínio. O desejável é os governados se reverem na governação para melhorar o que está bem. Para isso é primordial sabermos qual é o modelo. Socialismo democrátic­o? É verdade que uma doença crónica em África é imitar modelos ocidentais. Nunca me esquece que, copiando os soviéticos, passámos a designar as medicinas tradiciona­is como “práticas pré-científica­s.” A mulher que eu consulto no Gove é uma psiquiatra tradiciona­l que não se confunde com bruxaria. No entanto, por dinheiro, passam na rádio e televisão igrejas importadas do Brasil a quem se deu o direito de erguer um templo numa rua nobre da cidade. A igreja é rica…pagou.

No princípio da mudança, logo com a maka do “Fundo,” o cidadão comum embriagou-se com os jornais a cores e fotografia­s de eventuais delituosos de cartola e colarinhos brancos. Agora, quase se desvaneceu a expectativ­a. Que hoje é outra: melhorar as condições de vida e diminuir as desigualda­des. E alguma coisa se tem feito, mais fuba, por exemplo. Mas desaparece­u o carapau seco que antigament­e aguentou os contratado­s.

Resta, no limite de espaço desta crónica, fazer uma reflexão sobre uma realidade lendária: muitas vezes matam-se as formigas para deixar passar os elefantes…

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