As formigas e os elefantes
As formigas e as abelhas são dos seres vivos mais organizados. As formigas, no entanto, têm uma característica específica: a sua organização é militarizada, com um exército e classes sociais até às operárias que rasgam caminhos. As formigas saem de seus redutos para buscar alimento e por isso aparecem nas cozinhas, sempre em velocidade, entram na comida, principalmente nos açucareiros abertos, e são mortas com um simples pano da louça como se fossem pó, sem vida. Um homem do povo, quando não tem emprego e a mulher vai trabalhar na cidade nos trinta mil kwanzas de diarista, aí o homem, pelo menos, fica a tomar conta do açucareiro…é mata kassumuna, é quase ofensa ou brincadeira chamar a um homem isso, quer dizer que o seu serviço é matar as formigas.
E, por falar em formigas e elas abrirem caminhos, lembro-me de caminhos do mato em que as pessoas vão umas atrás das outras, lembro-me de estradas do antigamente sem asfalto, depois com asfalto e, recentemente, com as enormes colunas de chineses com os camiões atestados de toros grossos, depois o asfalto daqui para o Seles a desfazer-se na estrada sem bermas nem escoamento de águas ou cantoneiros.
E afinal, segundo vem sendo publicitado, as estradas também entram no circo da roubalheira. Como se fosse novidade. Como se o povo e quem mandava não soubesse num exercício surreal de transformar verdades no saber esconder em novidades que não levam a nenhum sítio…muito menos refazer a estrada a sério.
As estradas como o caminho das formigas e o pano da louça. As estradas e a governação com um ligeiro deficit comunicacional com os governados. Deixando pontas soltas como a da corrupção do magistrado português para arquivar processos sem nunca se ter dito sobre o que constava dos processos e quem se pretende defender para manter o segredo. Deve ser por interesse público.
Os tempos vão correndo, enganei-me no comboio… afinal é de um sul-africano. Há mais licenças para extrair diamantes no Bié. São os mesmos com muito dinheiro que conseguiram licença e o círculo mantémse. Vão dar emprego a pessoas que vão abandonar a lavoura. No entanto o peixe desapareceu, o povo virase mais nos cacussos, nem dia-a-dia na cidade nem cinturão das Fapla. E a comida está mais cara. Até a roupa de fardo subiu. Um mais velho que entrou no Maria Pia com uma antiga ferida na perna, ficou internado, depois a família encontra papéis na mesinha de cabeceira com uma relação do que devem comprar: adesivo, ligaduras, etc. O hospital não tem adesivo nem ligaduras…
Após as eleições abriu-se uma janela para a liberdade. Depois acelerou-se a corrida como se fosse de cem metros e agora? Quando meus amigos do estrangeiro me perguntam como é que vai Angola…eu costumo responder com ironia: estamos a despiorar. É no sentido da higienização. Com a certeza de que os jovens são o melhor desta nossa sociedade. Conseguem organizar associações, grupos de teatro, grupos de poesia e música. Portanto, é de um fundamentalismo oportunista quando se fala em moralizar os costumes ou resgatar os valores antigos. Quais valores antigos? Quais valores morais quando o que está em causa é o desrespeito dos valores jurídicos. Os mesmos que aprovavam a lei no papel aprovavam a corrupção na prática.
É preciso que a sociedade civil não continue dispersa. É preciso que um reitor da Universidade Agostinho Neto seja eleito pelos docentes, discentes e trabalhadores. Também o mesmo na magistratura.
Ninguém pode imaginar a perfeição porque se a ela se chegasse a vida perdia graça pois já não seria preciso fazer mais nada. Era a nostalgia plataforma para o suicídio. É com a imperfeição das palavras que se faz poesia. Com a imperfeição da pedra que se lapida a estátua. E com a imperfeição herdada que se desaperfeiçoa a imperfeição.
A governação deve buscar a resposta dos governados. O seu constante escrutínio. O desejável é os governados se reverem na governação para melhorar o que está bem. Para isso é primordial sabermos qual é o modelo. Socialismo democrático? É verdade que uma doença crónica em África é imitar modelos ocidentais. Nunca me esquece que, copiando os soviéticos, passámos a designar as medicinas tradicionais como “práticas pré-científicas.” A mulher que eu consulto no Gove é uma psiquiatra tradicional que não se confunde com bruxaria. No entanto, por dinheiro, passam na rádio e televisão igrejas importadas do Brasil a quem se deu o direito de erguer um templo numa rua nobre da cidade. A igreja é rica…pagou.
No princípio da mudança, logo com a maka do “Fundo,” o cidadão comum embriagou-se com os jornais a cores e fotografias de eventuais delituosos de cartola e colarinhos brancos. Agora, quase se desvaneceu a expectativa. Que hoje é outra: melhorar as condições de vida e diminuir as desigualdades. E alguma coisa se tem feito, mais fuba, por exemplo. Mas desapareceu o carapau seco que antigamente aguentou os contratados.
Resta, no limite de espaço desta crónica, fazer uma reflexão sobre uma realidade lendária: muitas vezes matam-se as formigas para deixar passar os elefantes…