Associação Tchiweka esclarece dúvidas
Há cerca de uma semana, a historiadora Rosa Cruz e Silva assinou, neste diário, um texto para contrapor o conteúdo de “alguma produção historiográfica”, que, no seu entender, “vem fixando uma narrativa que nega categoricamente a existência do MPLA a parti
Em reacção a uma matéria historiográfica em que é citada, a Associação Tchiweka traz esclarecimentos sobre o texto que vem fixando uma narrativa que nega categoricamente a existência do MPLA a partir de 1956. “Da análise cuidadosa dos dois manuscritos conhecidos, não é difícil concluir que, excluindo as alterações posteriores feitas num deles, estamos perante o mesmo documento”.
Mais uma vez o documento habitualmente referido como “Manifesto do MPLA” surge relacionado com uma polémica historiográfica. Há mais de 20 anos, o historiador Carlos Pacheco proclamou que tal “famigerado Manifesto” não existia, sendo um “papel que nunca ninguém viu”. E se ele, o historiador que dizia já ter pesquisado “de ponta a ponta” o arquivo da PIDE no que toca ao MPLA, nunca o encontrara, então “não tinham a mínima credibilidade factual e histórica” os que lhe faziam referência e o relacionavam com a história do MPLA (Carlos Pacheco, “MPLA – um nascimento polémico”, Lisboa, 1997: 33-34).
Felizmente, há vários anos que são do domínio público, não um mais dois exemplares manuscritos do tal Manifesto, idênticos em quase tudo, como adiante se explica, mas não temos conhecimento que o citado historiador tenha assumido publicamente o seu erro de então.
A 27 de Julho deste ano foi publicado no Jornal de
Angola um extenso artigo da historiadora Rosa Cruz e Silva: “A formação do MPLA – Dezembro de 1956. “As verdades verdadeiras” de cada um dos protagonistas na luta de libertação nacional” que, entre outras coisas, também critica Carlos Pacheco por essa e outras atitudes.Porém, o modo como a historiadora se refere a um documento do espólio de Lúcio Lara à guarda da Associação Tchiweka de Documentação (ATD), exige um esclarecimento que não deixe dúvidas ao público em geral sobre a existência e características desse documento, sem título, geralmente conhecido como “Manifesto do MPLA”.
Não é objectivo da ATD apresentar aqui argumentação sobre o surgimento do histórico Manifesto, a sua importância, interpretação ou uso, nem escrutinar os objectivos de quem nega ou deturpa o seu valor no processo da luta pela Independência de Angola, sendo essa tarefa dos estudiosos. Compete, porém, à ATD a divulgação do seu acervo referente à luta de libertação nacional e, neste caso concreto, comprovar a existência material do histórico documento e as suas características originais. É nesse sentido que vai o nosso esclarecimento.
No artigo de Rosa Cruz e Silva é feita referência a diferentes cópias manuscritas e dactilografadas daquele Manifesto, incluindo alguma comparação entre dois manuscritos semelhantes reconhecidamente redigidos por Viriato da Cruz, pertencendo um deles ao espólio de Lúcio Lara, arquivo da ATD (adiante designado por Ms1) e o outro ao espólio de Mário Pinto de Andrade,arquivo da Fundação Mário Soares (adiante designado por Ms2). E é nessa linha da comparação que seguiremos.
1-SOBRE O MANIFESTO EXISTENTE NA ATD (Ms-1)
O Manifesto existente na ATD (Ms-1) é um documento manuscrito de 17 páginas, contendo uma larga e profunda análise da conjuntura angolana nos meados da década de 1950 e sobre a necessária luta anticolonial, apelando à formação e união das diferentes organizações nacionalistas num amplo MOVIMENTO POPULAR DE LIBERTAÇÃO DE ANGOLA. A data de 1956 não consta mas deduz-se como provável pela referência no texto ao Congresso de Economistas “recentemente” realizado em Luanda, o qual tinha ocorrido em Setembro de 1955. Este documento faz parte dos muitos que Lúcio Lara foi reunindo desde Lisboa a Luanda, passando pela Alemanha, Tunísia, Guiné-Conakry, Congo-Kinshasa e CongoBrazzaville. Em 1997, quando o livro “Um amplo Movimento…” foi publicado por Lúcio e Ruth Lara, este documento original, que tinha sido emprestado para uma exposição do Museu Militar,não estava localizável, pelo que naquela primeira edição se fez recurso a uma das cópias dactilografadas. Em 2009, na fotobiografia “Lúcio Lara -Tchiweka – 80 anos – Imagens de um percurso”, a ATD publicou, em fac-simile, a primeira e a última folha do documento manuscrito, entretanto novamente localizado e devidamente arquivado. Cópias digitais desse original, a cores, estão disponíveis no Centro de Documentação da ATD e no Centro de Documentação e Investigação Histórica do MPLA (cedido pela ATD).
Características do documento: O Ms-1 está escrito apenas pela mão de Viriato da Cruz, não tem título nem data e não contém qualquer adenda ou observação. É composto por 17 páginas, estando a primeira e a última mais acastanhadas que as restantes. No canto superior esquerdo da primeira página podem verse marcas de ferrugem de dois clipes e uma parte ligeiramente rasgada. No canto superior esquerdo da última página nota-se uma parte rasgada e outra queimada pela ferrugem dos clipes. Nas demais páginas, no mesmo canto superior esquerdo, a marca de ferrugem é menos acentuada, como é normal.
O documento está escrito a esferográfica, vindo a mudar a espessura e a cor da tinta mais ou menos a meio do texto. Inicialmente foi usada uma esferográfica de ponta grossa e tinta fluente azul, depois há uma falha e o texto restante é redigido com uma esferográfica de ponta mais fina mas tinta mais escura. Esta nítida mudança de esferográfica verifica-se na linha 12 da página 8, na frase “Um governo de ampla coalizão de todas as forças...”A tinta azul acaba nas palavras“um governo de ampla”(que quase não se lê), surgindo o novo traço e cor com “coalizão de todas as forças”.
2 - SOBRE O MANIFESTO ARQUIVADO NA FUNDAÇÃO MÁRIO SOARES (Ms-2)
O Manifesto pertencente ao espólio de Mário Pinto de Andrade (Ms-2) está arquivado na Fundação Mário Soares, em Lisboa, e pode ser consultado online (http://www.casacomum.org/cc/visulaizador? pasta=04357.005.001). Foi publicado a preto e branco na “História do MPLA” do Centro de Documentação e Investigação Histórica do CC do MPLA (Luanda, 2008, vol. I: 399-415) e a cores na biografia “Américo Boavida: Tempo e Memória (19231968)”, de Fernando Correia (Luanda, 2009: 402-418).
O Ms-2 é praticamente igual ao Ms-1, com a mesma caligrafia (de Viriato da Cruz), a mesma distribuição do texto, incluindo o corte e hifenização das palavras, com o mesmo número de páginas, com o mesmo conteúdo, as mesmas palavras sublinhadas e as mesmas rasuradas. Ou seja, ambos foram escritos pela mesma pessoa na mesma altura.
Quais são então as diferenças deste manuscrito (Ms-2) em relação ao primeiro (Ms-1)?
a) No canto superior esquerdo do Ms-2, as marcas dos clipes não coincidem com os do Ms-1 e são muito mais ligeiras, e nenhuma folha está rasgada;
b) Não existe nenhuma alteração no traço e na cor do texto do Ms-2 ao longo das 17 páginas;
c) Na linha 12 da página 8, enquanto no Ms-1 prati
Não é objectivo da ATD apresentar aqui argumentação sobre o surgimento do histórico Manifesto, a sua importância, interpretação ou uso, nem escrutinar os objectivos de quem nega ou deturpa o seu valor no processo da luta pela Independência de Angola, sendo essa tarefa dos estudiosos
“No artigo de Rosa Cruz e Silva é feita referência a diferentes cópias manuscritas e dactilografadas daquele Manifesto, incluindo alguma comparação entre dois manuscritos semelhantes reconhecidamente redigidos por Viriato da Cruz, pertencendo um deles ao espólio de Lúcio Lara
camente não aparecem as palavras “governo de ampla”, no Ms-2 elas aparecem nitidamente e com a mesma tonalidade que as demais letras (o que se explica numa cópia com papel químico, pois a pressão da esferográfica não se altera com a falha de tinta);
d) Em algumas folhas do Ms-2 surgem observações (quase sempre em francês) e letras e frases sublinhadas ou enquadradas, com tinta preta mais carregada e numa caligrafia diferente, que se reconhece ser de Mário de Andrade. Isso ocorre nomeadamente nas páginas 1, 2, 4, 8, 9, 13, 14, 16 e 17. Na primeira página deste Ms-2 aparece o título Manifesto do MPLA e, na última página, com a mesma letra e tinta, após a última linha foi acrescentado (em francês) Décembre 1956.
Tudo indica, portanto, que o Ms-2 é uma cópia do Ms1, feita com papel químico preto, provavelmente uma 2ª via (considerando a sua nitidez)ficando por se saber se terá havido uma 3ª via ou mais do que três. Nesta cópia de 2ª via do Manifesto escreveu Mário de Andrade os aditamentos acima referidos.
3 - SOBRE AS CÓPIAS DACTILOGRAFADAS
Deste documento existem também diversas cópias dactilografadas, em diferentes arquivos, incluindo o da ATD, sendo muito difícil estabelecer quando e onde foi feita cada uma dessas cópias, obviamente posteriores ao texto manuscrito. Com um número variável de páginas, as cópias dactilografadas apresentam lacunas, erros e pequenas alterações em relação ao documento original. Das conhecidas, o título varia entre “Manifesto do MPLA ao Povo Angolano” e “Manifesto do MPLA”, e a data varia entre “10 de Dezembro de 1956” ou simplesmente “Luanda, Dezembro 1956”. Como já foi esclarecido, nem título nem data constavam do manuscrito original.
CONCLUSÃO
Da análise cuidadosa dos dois manuscritos conhecidos, não é difícil concluir que, excluindo as alterações posteriores feitas num deles, estamos perante o mesmo documento, tendo sido utilizado o papel químico que era comum na época para fazer cópias em simultâneo, falando-se então em 1ª via, 2ª via etc. O facto de no Manifesto existente na ATD (Ms-1) se notarem traços e cores de letras diferentes confirma que este exemplar foi a 1ª via ou “o original”. O outro documento (Ms-2) com letras em cinzento (o que facilmente se confunde com a escrita a lápis), e sem alterações na espessura ecor da letra, é uma cópia a papel químico daquele original. Foi nesta cópia que Mário de Andrade acrescentou, em data indeterminada, Manifesto do MPLA e Décembre 1956.
Finalmente, temos de lamentar que a historiadora Rosa Cruz e Silva não tenha esclarecido as dúvidas que o seu texto lança quanto ao carácter original do documento do espólio de Lúcio Lara, consultando o referido documento, cuja existência é do conhecimento público há vários anos. Parafraseando a própria historiadora, “numa análise que nem precisa de ser rigorosa, sem recurso à lupa”, facilmente se constata que entre os dois manuscritos (o do espólio de Lúcio Lara e o do espólio de Mário de Andrade) não só existe diferença na marca dos clipes como no traço e cor da escrita, e que a primeira via do Manifesto original é a que não possui título nem data nem os outros acrescentos feitos por Mário de Andrade ao texto redigido por Viriato da Cruz.