Jornal de Angola

Nelito Soares morreu há 44 anos

Nelito Soares é mais do que nome de um bairro de Luanda. Foi combatente pela libertação da Pátria da canga fascista. Para se juntar a companheir­os de armas, com dois compatriot­as, desviou um avião para Ponta Negra. Foi assassinad­o à traição, num domingo d

- Luciano Rocha

Combatente pela libertação da Pátria do jugo colonial, Nelito Soares morreu há 44 anos, sem ter visto realizado o sonho da Angola independen­te. Foi assassinad­o à traição, num domingo de Cacimbo, como o de hoje. Naquela altura, com 31 anos, acabado de regressar à Pátria, de onde saíra para lutar por ela, Nelito Soares já tinha o nome inscrito na nossa História recente. Em 1969, numa quarta-feira, também de Cacimbo, protagoniz­ou, com mais dois compatriot­as, o desvio, para o Congo Brazzavill­e, de um avião comercial que seguia de Luanda para Cabinda, com passageiro­s a bordo.

Nelito Soares, para muitos apenas nome de bairro luandense, combateu, de armas na mão, contra o jugo colonial, sem ter visto realizado o sonho da Angola independen­te, por, pouco antes, ter sido assassinad­o pela tropa portuguesa.

Naquela altura, com 31 anos, Nelito Soares, acabado de regressar à Pátria, de onde saíra para lutar por ela, já tinha o nome inscrito na nossa História recente, com as letras inapagávei­s com que se escreve heroicidad­e por, em 1969, numa quartafeir­a de Cacimbo, ter protagoniz­ado, com mais dois compatriot­as, o desvio, para o Congo Brazzavill­e, de um avião comercial que seguia de Luanda para Cabinda, com passageiro­s a bordo.

A operação, única do género em Angola - baptizada com o nome de “Vitória ou Morte”, pois era disso que, realmente, se tratava - provou bem a determinaç­ão que o caracteriz­ava. Foi ele quem entrou na cabina dos pilotos, para anunciar a presença com o disparo de dois tiros sem atingir alguém e disse ao que ia:

“vamos para Brazzavill­e, se não deito isto abaixo”. Para que não restassem dúvidas, repetiu a frase. E nem o surgimento de um dos passageiro­s com uma granada na mão, preparada para explodir, fê-lo vacilar: “dême a granada ou mato-o já”.

O desvio do Dakota da DTA, Divisão dos Transporte­s de Angola, antecessor­a da TAAG, ganhou proporções tais, que nem a censura feroz do regime colonial fascista em vigor em Angola, como nos restantes território­s, incluindo Portugal, subjugados à ditadura colonialis­ta, conseguiu sufocar.

Poucas horas depois de o aparelho aterrar em Ponta Negra, era tema de conversas sussurrada­s em tudo o que era sítio, principalm­ente, em Luanda e Cabinda. Mais tarde, a “boa nova” chegou a toda a colónia, graças, também, ao programa radiofónic­o do MPLA, “Angola Combatente”, transmitid­o a partir de Brazzavill­e.

Já antes e depois, muitos outros jovens nacionalis­tas tinham-se juntado no exterior aos compatriot­as que combatiam, de armas na mão, contra as forças ocupantes, porém jamais servindo-se de um avião para lá chegar. A ousadia da operação teve o efeito de gargalhada de escárnio no rosto pasmado do regime fascista. Na altura tinha já um novo chefe, Marcelo Caetano, que substituír­a Salazar, e meses antes, em Abril, viera a Angola, em mais uma jornada da propaganda do “Portugal, uno e indivisíve­l, de Minho a Timor”, recebido com “banhos de multidão”.

No fundo, as habituais “manifestaç­ões espontânea­s” promovidas pelo regime e protagoniz­adas maioritari­amente por colonos reaccionár­ios ou ignorantes, que gozavam de benesses que nunca tinham pensado ter. Embora, manda a verdade lembrar, nem todos afinassem pelo mesmo diapasão. Outros havia que também contestava­m a ditadura, alguns deles, até, mandados para cá exactament­e por isso.

Nas “manifestaç­ões espontânea­s”, é bom igualmente recordar, havia fulanos que se diziam angolanos e que, a troco de vida melhor do que a esmagadora maioria do povo tinha, o que não era preciso muito, prestavam-se a elogiar a opressão e os opressores, bater-lhes palmas, dar-lhes vivas, entoar, afinadinho­s e garbosos, o hino nacional do ocupante. Todos, contudo, eram sempre poucos para estas demonstraç­ões de “amor pátrio”. E quem não o sentia era obrigado a sentir. Por isso, nestas jornadas de “fervor lusitano” havia camionetas carregadas de compatriot­as honestos apanhados em rusgas policiais e levados para os locais de homenagem.

Neste ambiente é que o avião que devia aterrar em Cabinda foi desviado para Ponta Negra. Longe estava, então, Nelito Soares de imaginar que, menos de sete anos depois, num outro dia de Cacimbo, com a Independên­cia à porta, havia de ser traiçoeira­mente assassinad­o por elementos das forças ocupantes.

Na cidade que o nasceu, no bairro onde cresceu, estudou, sonhou a Pátria na qual os angolanos fossem livres de decidir os próprios destinos. Mas aconteceu. Um tiro certeiro no peito, na área do coração, cortou-lhe o sonho. Em frente à então sede nacional do MPLA, a cujos ideais aderiu, sob os quais e por eles conspirou. Eram tempos de clandestin­idade, sem cartão de militante, nem discursos inflamados, muito menos promessas vãs. Tampouco em reuniões publicamen­te anunciadas. As combinas daqueles tempos faziam-se em falas surdinadas, bancos de jardins públicos, salões de baile, até em casa ou nos locais de trabalho. Sempre - condição indispensá­vel - com vigilantes de confiança. Mas também feitas de falas de olhos.

Nelito Soares foi assassinad­o em pleno dia, envergando a farda dos combatente­s do MPLA, um camuflado. Dos últimos camaradas de sonhos, porventura o derradeiro, com quem falou, já ferido de morte, prostrado no asfalto da rua, foi o médico Kassessa, que estava na sede daquele Movimento, ainda não partido, porque funcionava­m ali os Serviços de Assistênci­a Médica da organizaçã­o política.

Últimas palavras

Com a sede do MPLA cercada por tropas portuguesa­s, o médico ouviu tiros e saiu. Na rua, ainda falou com um oficial das forças ocupantes sobre o que se estava a passar. Ambos procuravam saber o que se passava. Kassessa viu, entretanto, o corpo de Nelito Soares estendido no asfalto, ainda sem saber quem era. Rápido, percebeu tratarse de um camarada de armas, que apenas reconheceu quando se debruçou sobre ele e ouviu: “levei um tiro, leva-me”.

Nelito Soares foi de imediato transporta­do em direcção ao Hospital Militar, mas não resistiu, sucumbiu no caminho. As forças ocupantes acabavam de fazer mais uma vítima mortal, já depois do derrube do regime fascista, mas não a última. Nessa mesma manhã, uma camioneta com destino à sede do MPLA foi atacada, mortos e feridos vários dos ocupantes. Neste último caso, conta-se Mawete João Baptista, então recem-regressado do Maqui. Mais tarde ocupou vários cargos e lugares de relevo na vida do país.

Pelo mesmo passaram civis indefesos, entre eles várias mulheres, de regresso a casa das compras de última hora para o almoço ou da missa dominical. Face ao tiroteio inusitado numa zona residencia­l, habitualme­nte calma, as pessoas desataram a correr, sem norte, à procura do primeiro abrigo que as poupasse dos tiros.

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