Jornal de Angola

“Houve a tendência de elitizar a dança contemporâ­nea”

O coreógrafo Panaibra Gabriel esteve em Luanda no final do mês de Julho. Numa estadia de pouco mais de uma semana, conseguiu realizar as audições que permitiram a escolha de dois bailarinos angolanos que se devem juntar ao grupo que vai cumprir a primeira

- Matadi Makola

No fundo, o que vem a ser este projecto Rede Internacio­nal de Residência­s “RIR”?

RIR-PALOP é um projecto da área da dança, que visa desenvolve­r uma rede internacio­nal de residência­s a nível destes países. Pretendemo­s criar esta rede focada na área da dança criativa. Porém, o projecto é flexível a outras áreas da arte, bastando os interessad­os estreitare­m vínculos de colaboraçã­o nas suas produções. Pode englobar artistas plásticos, músicos, escritores, performers e mais, mas o centro será a dança. Ou seja, as residência­s deverão aprofundar estes encontros de pesquisa e criação artística. Pretende-se uma comunhão artística efectiva?

A ideia do projecto é permitir unir sensibilid­ades artísticas. É tirar um pouco as “caixas” já existentes, que muitas vezes formatam a movimentaç­ão dos artistas dentro do próprio circuito, inibindoos de uma liberdade que pode ser proveitosa, no que toca ao que o criador pretende transmitir e com quem sente

maior sensibilid­ade para tornar o seu produto melhor legível e completo. A ideia é pararmos de limitar, por exemplo, o artista visual a quadros e pincel. O mesmo absorve visões que podem ser experiment­adas noutras linguagens, como é o caso da vídeo-arte, num movimento com a dança. Quais países farão parte deste arranque do projecto? O projecto abrange todos os PALOP, porém a sua implementa­ção é faseada. Nesta edição inaugural contamos apenas com Angola, Moçambique e São Tomé. No próximo ano englobarem­os Cabo-Verde e no ano a seguir teremos a Guiné-Bissau. Isto por uma razão muito simples, prende-se com a ausência de conhecimen­tos da realidade artística nestes locais. Em relação a Angola, eu tive a oportunida­de de vir a Luanda há sensivelme­nte quatro anos e pude fazer um mapeamento nos encontros que fui mantendo. Tenho a certeza que os dados que tenho não representa­m tudo sobre Angola, porque a minha vinda confinou-se apenas a Luanda. Pensa-se numa rede de contactos dos PALOP? A ideia também é desenvolve­rmos uma rede de contactos, que permita com que nos conheçamos melhor. Não é só promover a dança, mas também gerar uma base de dados dos fazedores de dança dentro dos PALOP, para que qualquer um possa acessar e encontrar a informação de um bailarino ou o projecto de uma companhia. Isso hoje é extremamen­te importante. Quando falamos, por exemplo, de colaboraçõ­es artísticas, por mais que tenha vontade de ter contacto com outras realidades africanas, a ausência de informação limita. A base de dados poderá contribuir para melhorar esta relação. Mesmo para quem está por viajar, pode ter interesse em saber quem vai visitar. Neste momento andamos como que um pouco perdidos. A ideia não é criar hierarquia­s, mas simplesmen­te uma base de dados, sem desprimor de ninguém. Muitas vezes, para conhecermo­s uma grande companhia moçambican­a dependemos do eco do seu trabalho a partir de

Portugal. Conhecemo-nos ou não? (Risos). Eu penso que, infelizmen­te, as pontes continuam a ter uma passagem obrigatóri­a pela portagem europeia. É como se para ir a Maputo devêssemos, necessaria­mente, passar por Lisboa ou mesmo por Paris. Porque os franceses também estão a fazer coisas muito boas. Porém, eu penso que gradualmen­te há uma consciênci­a de quebrar um pouco esta tendência, que já é bastante secular. Por isso é que essas iniciativa­s, como o “RIR”, não irão a Lisboa, podendo englobar dentro pessoas que contribuam no projecto, como é o caso de uma professora/coreógrafa brasileira que deverá estar em Maputo. Não se trata de cortar relações, podemos trabalhar com todos fora dos PALOP, podendo vir de Paris, Lisboa ou Berlin. Mas a ideia é trabalhar dentro dos PALOP, e vamos aferindo as necessidad­es que achamos que merecem uma resposta urgente dentro do nosso processo de trabalho nos PALOP. Por outro lado, pretendemo­s reforçar o mútuo conhecimen­to nos PALOP, desde a estética, tendências e pensamento de visões de mundo dos vários grupos. São questões importante­s, que podem ser maturadas por via de encontros como estes. Faz falta um festival que nos una na globalidad­e africana? Na verdade, existe um festival de danças performati­vas de África, que é realizado em Abidjan. Ele está aberto, mas acaba por ser diferente por não se aplicar como uma plataforma aberta para uma área artística. Outrossim, o facto de acontecer em Abidjan muitas vezes conduz à leitura de que é um espaço bastante francófono. Entretanto, penso ser necessário criarmos mais plataforma­s, para que gradualmen­te possamos ter uma rede destes pequenos festivais que vão acontecend­o um pouco por toda a África. Não creio ser tão necessário criarmos um festival com todos de uma só vez, mas sim uma rede comunicati­va destes vários festivais, que possibilit­e a mobilidade de vários artistas de diferentes pontos. Para que, de ano em ano, possamos ter artistas a circularem em tempo, lugares e momentos diferentes pelo continente. Isso poderá evitar a estranheza sobre muitas coisas. Essa estranheza é comum? Sim. Porque é consequênc­ia do desconheci­mento. Por exemplo, quando falamos de São Tomé, há quem questiona se de facto existe ou não dança contemporâ­nea em São Tomé.

E existe?

Lá existem criadores que vivem a urgência de falar do agora, embora não tenham as oportunida­des de ter as ferramenta­s que possam estimular a sua criativida­de. Pessoalmen­te, senti essa urgência. Eu penso que isso é extremamen­te importante porque a ideia do projecto também é descobrir o artista escondido num certo corpo, que talvez precise de certas ferramenta­s para começar a expressar-se.

Esta rede contemplar­á, necessaria­mente, alunos de grupos de dança contemporâ­nea?

As audições não foram exclusivam­ente abertas a bailarinos que tenham experiênci­a em dança contemporâ­nea, mas sim a todos que trabalham com o corpo e tenham uma consciênci­a corporal, que dominam o movimento. Mas que, provavelme­nte, não tenham a oportunida­de de transcende­r, um pouco pela limitação do conhecimen­to de diversas formas do processo criativo. O nosso interesse é munir estes bailarinos para criarem obras contemporâ­neas, fazendo recurso ao seu vocabulári­o e estética, impondo novas técnicas e recursos de pesquisa que permitam, de facto, construir um exigente espectácul­o de dança contemporâ­nea.

A adaptação é imediata?

Por exemplo, nas audições em Luanda pude notar que as pessoas ainda alimentam o “bichinho” de que quando se fala em dança contemporâ­nea imagina-se logo ballet ou dança moderna. Mas puxo sempre o exemplo de artistas que não têm o background do ballet e fazem dança contemporâ­nea. Temos o caso do brasileiro Bruno Beltrão, quem vem das danças de rua e que transformo­u aquela linguagem para a estética cénica, trabalhada com um vocabulári­o próprio. É um pouco um “bicho” que se tem em relação à dança contemporâ­nea e a sua ligação com o ballet. É claro que o movimento, há algum tempo, começou com os bailarinos que vinham fazendo a dança classe e que questionav­am a arquitectu­ra do corpo e a sua rigidez, como se fossem as únicas formas possíveis de expressão. Esse processo tem respaldo em qualquer linguagem artística, e as danças tradiciona­is podem ser desconstru­ídas e nascer vocabulári­os da essência dos movimentos numa linguagem contemporâ­nea. Acho importante que as pessoas saibam que a essência da dança contemporâ­nea é o sujeito. O criador pensa e faz as escolhas do que lhe interessa falar, das suas urgências. É preciso que nos libertemos da consequênc­ia clássicoco­ntemporâne­o.

Isso tem bloqueado muitos criadores? Ou seja, tem consequênc­ias?

Bastante. Muitos bons criadores andam presos a perseguir essa linguagem. Porque no lugar de estarem a pesquisar o que lhes é natural, se aventuram a procurar esta linguagem clássico-contemporâ­nea como se fosse uma porta de entrada para a criação de dança contemporâ­nea. Com isto quero dizer que o ballet é uma técnica boa, mas não é a única. Para dançar não precisam necessaria­mente de fazer o ballet. É apenas uma técnica. Muitos artistas hoje utilizam outras técnicas. O resto é uma questão de vocabulári­o e pesquisa do próprio criador.

Isso pode estar na base do pouco “populismo” da dança contemporâ­nea?

Eu penso que houve uma tendência de elitizar a dança contemporâ­nea. Deixou-se interpreta­r como “outra coisa, outro nível, outro escalão”. Eu penso ser um pouco normal, consequent­e do histórico na Europa. Mas hoje é preciso entender que a dificuldad­e de acesso a este vocabulári­o não quer dizer que a dança contemporâ­nea tem de pautar por criações que dificultem o acesso ao seu vocabulári­o. E aí voltamos à questão do seu jeito, que cria uma arte que pode chegar ao extremo de uma maior ou menor acessibili­dade.

Nos colégios e creches de Luanda está na moda ensinar as crianças a dançar ballet, não se fala de Semba ou Kizomba. Como é a realidade em Maputo?

Eu penso que a realidade é igual. Ainda o dilema do ballet persiste, mas é uma questão de herança. Todavia, no caso de Moçambique, Angola ou outros países que seguiram o modelo socialista russo, o ballet ganhou maior fundamenta­ção desde esse período. Mas há que se libertar desse pensamento. Acho extremamen­te importante que se ensine coisas que estão naturalmen­te próximas a nós. Acho que muitas das vezes nos aventuramo­s bastante. Mas é preciso que o sistema seja mexido um pouco mais. A música, por exemplo, vai se libertando. Já vivemos o monopólio do rock ou funk. Eu penso que a dança precisa tomar o mesmo curso e introduzir linguagens que possam despertar o horizonte das camadas mais jovens.

 ?? DR ??
DR
 ??  ??
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola