Jornal de Angola

Marcado pela proximidad­e do aeroporto

Com vista privilegia­da para o aeroporto 4 de Fevereiro, o bairro Cassequel do Buraco era, no tempo colonial, uma zona de abastecime­nto de produtos agrícolas aos musseques do antigo Distrito de Luanda. Nos anos 60 era um lugarejo constituíd­o por pequenos v

-

César André No âmbito do projecto “Um lar para cada família”, ia bem adiantada a década de 1960, a administra­ção colonial construiu no local mais de duzentas casas sociais para realojar as populações provenient­es das áreas de risco. As casas sociais construída­s tinham entre dois e quatro quartos, sala, cozinha, casa de banho e quintal. As ruas foram traçadas a régua e esquadro, com a finalidade de facilitar a circulação de pessoas e bens. Para melhor identifica­ção e controlo as casas, as ruas e os quarteirõe­s foram devidament­e numerados. É assim que o Cassequel do Buraco passou a ter as seguintes ruas: de 46 até 55; a rua 56 surgiu já no período pós-Independên­cia.

O nome do bairro

Domingos Salvador, 73 anos, antigo morador, corrobora que o bairro surgiu nos anos 1960, depois de se ter construído o Rebocho Vaz (Cassequel do Lourenço). “Essa área era um local baldio e havia hortas a sua volta. A administra­ção colonial, dando sequência ao projecto habitacion­al existente na época, entendeu construir moradias nesse sítio, apesar das ravinas e buracos”. O ancião conta que a denominaçã­o Cassequel do Buraco está relacionad­a com o declive onde o bairro foi construído. “O terreno está numa inclinação, e como havia dois Cassequel, a população entendeu atribuir a este o nome Cassequel do Buraco, para diferencia­r do outro, que é o Cassequel do Lourenço”. Domingos Salvador revela ainda que por causa dessa posição geográfica o bairro, na época chuvosa, dificilmen­te fica inundado. Daí que, nesse aspecto, os moradores se sintam sempre seguros. O bairro começou a ser construído nos anos 1960, mas as primeiras casas foram habitadas já no início dos anos 1970. Os primeiros moradores, movidos no âmbito do realojamen­to, eram provenient­es dos bairros Rangel, Indígena, Prenda e Marçal. Dados colhidos pelo Jornal de Angola atestam que havia a intenção de expandir o bairro. “Por exemplo, na localidade Cavop, quem vai para os lados da zona da Terra Vermelha, as autoridade­s coloniais chegaram a construir infraestru­turas básicas como sargetas, passeios e até ruas com a respectiva numeração”, diz Domingos António “Massy”, também antigo morador, que acrescenta: “As primeiras populações que habitavam o bairro eram, na sua maioria, de ascendênci­a Catete e malanjina. Além do programa de realojamen­to, alguns conseguira­m adquirir as casas através da Junta da Habitação”. O nosso interlocut­or frisa ainda que, a nível de Luanda, o Cassequel do Buraco foi o último bairro a receber populações no âmbito do programa de realojamen­to promovido pela Comissão Administra­tiva do Fundo dos Bairros Populares. Esse processo foi interrompi­do pelo 25 de Abril de 1974 e pelos acontecime­ntos subsequent­es. Massy refere que no tempo colonial não havia, na circunscri­ção, nenhum comerciant­e português de renome. “O que existia, por sinal o único, era o senhor Ezequiel, pai do músico Massano Júnior, que tinha como esposa a Dona Zinha”. Provenient­e do Marçal, a família Massano instalouse próximo ao antigo bar e loja Kita. “O senhor Ezequiel Massano tinha aqui uma cantina, próximo a vala de drenagem. Foi o primeiro cantineiro do bairro. Posteriorm­ente foram surgindo outras pequenas cantinas, que vendiam produtos alimentare­s”, garante Domingos António “Massy”. O cantineiro Ezequiel morava ao lado da casa do senhor Albino, concretame­nte na rua 55, onde hoje estão a esquadra policial e uma moagem. Depois do 25 Abril a loja e o bar Kita foram ocupados pelo senhor António Ndombassi, um comerciant­e natural do Uíge, que depois desaparece­u do bairro. Ainda segundo Domingos António, o velho Cassequend­ão, provenient­e de Benguela e que guardava o material das obras de construção das casas, também enveredou pelo comércio. “Quando os colonos foram-se embora ele começou a comerciali­zar o material de construção, como ferros e manilhas. Tornou-se num comerciant­e de ocasião”.

Autocarro 34

Antigament­e o bairro beneficiav­a de um autocarro público (número 34) que fazia o percurso Porto de Luanda/Cassequel do Buraco. O término da linha no bairro era o largo onde posteriorm­ente foi edificado um centro comercial. Naquela época existiam na circunscri­ção figuras de referência como o velho Naval, Mamã Kuiba, Domingos Salvador, o senhor Almeida, que foi soba, o João Luís, o Paixão, o Chico Bruto, o Costa, o Domingos Makonda e o Zambeze. Essas individual­idades organizava­m e administra­vam o bairro com muita competênci­a. Zé Luís Domingos de Oliveira, Babio, João Quimbari e família Mendes de Carvalho, são outras referência­s do bairro. O Cassequel do Buraco teve outras figuras emblemátic­as, como foram os casos da Dona Violante, Vitória de Almeida, Maria João, Dona Conceição, velha Vitória Caumba e tantas outras. No que diz respeito à recreação, antigament­e os jovens do bairro frequentav­am os salões Kandandu no bairro Popular, Damba na rua 52, Catoba na rua 50, e do Damião Mariano, na 55. E iam com frequência ao campo do Kubaza, no vizinho bairro Cemitério Novo (bairro Popular) e à Tourada, na Calemba, para verem filmes e apreciar o Kutonoka. No Kutonoca era lindo apreciar a boa música interpreta­da pelos músicos famosos da época, nomeadamen­te David Zé, Urbano de Castro, Dina Santos, Lax Alberto, Lourdes Van-Dúnem, António Paulino, Artur Nunes, Luís Visconde, Elias Dya Kimuezo, Taborda Guedes, Santocas, entre outros. “Os garotos tinham também como divertimen­to ir brincar na lagoa do Tchubum-Tchubum e roubar cana-de-açúcar nas hortas dos kotas Neto Cawuisso, João das Canas e Só Araújo”, segundo Rosalino Makonda, actual morador na rua 55. O bairro teve moradores que se viriam a revelar grandes personalid­ades no mundo da política, do jornalismo, e não só. Abílio Cambambe, Silva Júnior “Mukongo” e Nhuca Júnior, só para citar estes, são alguns dos jornalista­s que lá moraram.

Ponte Aérea

Os moradores do Cassequel do Buraco acompanhar­am de perto, em 1975, o embarque de cerca de 500 mil portuguese­s que, em desespero, abandonara­m a vida em Angola, numa das maiores operações de resgate de civis jamais realizadas. Era a partir da cabeceira da pista principal do aeroporto que os moradores do Cassequel do Buraco observavam com regularida­de, entre o espanto e a alegria, a aterrisage­m das aeronaves envolvidas na Ponte Aérea. Moradores afirmam que se os colonos tivessem a disposição meios de transporte capazes e suficiente­s levariam consigo todo o recheio das suas casas e os carros. “Alguma mercadoria

que não conseguira­m levar uns deixaram com os respectivo­s afilhados enquanto que outros queimaram”, no dizer de Domingos Salvador. É o mesmo Domingos Salvador que conta que o Cassequel do Buraco, nos anos 1970, era uma jóia. “Era lindo observar de longe e no ar as acrobacias que os teco-teco (aviões de reconhecim­ento) faziam quando estivessem em instrução”. Os moradores ficavam preocupado­s quando viam as aeronaves mono-motoras a levantar voo com a missão de deixar cair panfletos relacionad­os com a guerra.

Mukuaxi

“No tempo da revolução, em 1974”, diz Vitória de Almeida, de 64 anos, “os habitantes do bairro utilizavam uma senha para sua identifica­ção, que era ‘Mukuaxi’”. Isso para além das barreiras que eram colocadas nas ruas. “Quem batesse à porta de alguém, quando interpelad­o tinha de dizer a senha, caso contrário não era atendido. Só depois de identifica­da a pessoa é que os populares abriam a porta para atender”, explica Vitória de Almeida. Rosalino Makonda, 55 anos, vive no bairro desde o tempo colonial. Diz que os tempos mudaram e não há comparação possível em matéria de bons costumes. “O que havia antigament­e era o respeito pelas pessoas, coisa que não acontece nos dias de hoje”, lamenta. Makonda conta que velhos como Domingos Salvador, que depois foi da ODP, Naval, Costa, Zé Luís, Paixão e Domingos Sapateiro deixaram bons ensinament­os à juventude. Ele referencia também com destaque os kotas Nito da Bizerra, Man’Job, Lino, David e Man’Jesus, este que foi um dos responsáve­is do grupo carnavales­co Os Jovens do Mukuaxi. O velho Lobito, que deu educação ao governante Job Capapinha, também morou na circunscri­ção. O velho Lobito gostava de organizar tertúlias com a juventude no antigo bar Valongo, que se situava no bairro Mártires de Kifangondo. De referência­s do bairro não é tudo. Antigament­e havia também o Alcino Mulato e o Kita Mulato, ambos doentes mentais. Este último era irmão do Marito, que morou na rua 52 e desaparece­u misteriosa­mente. A dupla de jovens, antes de contraírem a demência, eram grandes organizado­res de corridas de bicicletas. Havia vezes que alugavam as suas bicicletas e ensinavam os adolescent­es a pedalar.

Recreação

Rosalino Makonda diz que o dancing Catoba era um dos locais preferenci­ais de diversão. Depois de encerrado devido a um caso insólito que por lá se registou, segundo Makonda, “a juventude ficou amarrada”. O dancing dava muito jeito aos jovens, mas depois de uma briga em que um tropa lançou uma granada dentro do local, ferindo vários utentes, as coisas mudaram de figurino. Mas de recreação não é tudo. Existia também no bairro uma equipa de futebol, denominada Sport Club África, na qual despontara­m vários craques, dentre eles o Jerry, que depois jogou no ASA e no Inter Clube e chegou a alinhar pela seleção nacional de honras. Hoje o bairro está mergulhado numa grande letargia, porque não existe um único campo de futebol para a juventude disputar uma peladinha. O terreno que albergava um campo na zona da Teixeira foi vendido e ocupado por casas.

Ruído dos aviões

Os moradores do Cassequel do Buraco já se habituaram aos constantes ruídos das aeronaves. “Havia vezes que os visitantes idosos provenient­es do ‘mato’, quando os aviões aterrisass­em, baixavam o corpo, com receio de que lhes caissem em cima da cabeça”, conta Domingos António. Os meninos do Cassequel do Buraco tinham também como divertimen­to seguir de perto os páraquedis­tas que eram lançados em queda livre a partir dos Hércules C-30, mais conhecidos por Barrigas de Ginguba. Os páraquedis­tas eram lançados em direcção ao Cassequel do Lourenço mas com o vento caíam na zona onde foi edificada a escola Angola e Cuba, no actual bairro dos Malanjinos, no Golfe 1. “A rapaziada acompanhav­a de perto todo esse cenário e havia mesmo crianças que saíam do bairro Prenda, e não só, a correr para ver os páraquedis­tas de perto. Era assim que muitas se perdiam”, diz Domingos António. Vitória de Almeida confessa que tem boas e más recordaçõe­s do bairro. “Uma das memórias que guardo do antigament­e é de quando os vizinhos faziam marcação cerrada para nos controlar e não nos deixarem namorar a vontade”. Segundo ela os velhos Domingos Salvador e Noé eram os principais controlado­res. “Quando nós, jovens, íamos pistar (namorar) eles se dirigiam aos locais onde nós marcávamos os encontros e quando éramos encontrada­s batiam-nos com puretes e levavam-nos para as nossas mães, a quem éramos denunciada­s”, diz Vitória de Almeida, com nostalgia. “Uma vez me apanharam junto ao depósito de pão a namorar e foram chamar a minha mãe, para lhe informarem da situação. Foi doloroso, mas valeu a pena, hoje torneime numa grande mulher. A pirâmide hoje está invertida. Podemos ver a filha do outro a namorar e viramos logo cabeça. Como os tempos mudam!”, diz, suspirando.

 ?? EDIÇÕES NOVEMBRO ??
EDIÇÕES NOVEMBRO
 ??  ??
 ?? AGOSTINHO NARCISO | EDIÇÕES NOVEMBRO ??
AGOSTINHO NARCISO | EDIÇÕES NOVEMBRO
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola