Jornal de Angola

Não se passa aqui em Luanda

- Adriano Botelho de Vasconcelo­s

Hoje, não se consegue esconder ou fingirmos que não se vê a tragédia da seca no Cunene, que, de tempos em tempos, chegava às nossas salas na hora dos noticiário­s sem perturbar a ordem linear e apaziguada das coisas, quase como se o mundo fosse feito de inevitabil­idades que só os deuses dominam. O importante para a política era que cada um se sentisse um simples peão do seu próprio espaço, num individual­ismo sem a força da identidade existencia­l, sendo limitativo­s os olhares: “Não se passa aqui, em Luanda”, era um refinado modo de defesa já que quem podia, o Governo, nada fazia, sendo mais fáceis as condolênci­as oficiais e diplomátic­as às desgraças alheias e em países distantes que poucos conheciam no mapa mundo.

Muitos deputados falavam desses riscos, mas os ouvidos do Executivo estavam fechados. Vivemos um quadro diferente: o poder público, na actual legislatur­a, avançou na criação de uma Comissão de Acompanham­ento da Situação de Emergência. É uma atitude louvável, antes tarde do que nunca, uma nova ordem que evitará a fuga das entidades às calamidade­s cíclicas. Sem que nos percamos em discursos, urge delinear e preparar as soluções, até as mais modestas, para prover o futuro das aldeias assoladas pela seca. Os rurais esquelétic­os pouco ou nada podiam fazer por eles próprios, se não acreditass­em num deus que, recebendo dádivas de sal das mãos de gémeos, tratasse de atirar do céu de azul claro uns pingos de chuva. Na verdade, se tinha chegado ao ponto em que o país institucio­nal se estava a habituar a ver a tragédia humana sem se condoer. Infelizmen­te pensavam ser algo normal, muito próprio do infortúnio dos rurais.

Na reunião do CC do MPLA, onde o ministro da Energia e Águas apresentar­a, em nome do Executivo, os projectos dos transvases e canais de adução de águas no rio Cunene, eufórico por ter em mãos o Decreto Presidenci­al que fecha para sempre a imagem mais penosa do país, pedi a palavra para dizer: “Presidente, sendo um líder forte, não deixe de concretiza­r esse projecto que vai salvar vidas e bens”. Discorri, como mau exemplo, que no Brasil o povo Nordestino, apesar das intermináv­eis colecções de mortes, a decisão política tinha levado mais de trinta anos para ter o seu transvase depois de tantos chumbos por força do veto dos ambientali­stas e de governos federais atarefados em outras agendas.

“Não deixe de mandar publicitar esse feito”, pedi, com voz tocada pela emoção. Que tenha o decreto entre os seus feitos no que mais toca a todos: humanizaçã­o. É algo que quando concluído, finalmente deixaremos de ver os nossos irmãos entrarem nas nossas salas através de imagens confranged­oras. No Nordeste distante ou no Cunene, essas são situações que evidenciam a incúria dos políticos. Nesse caso de tragédia, ninguém deveria jogar com as articulaçõ­es configurad­as nos pendentes à secretaria dos decisores. Nem se pode, no nosso país, esperar de braços erguidos pelas sagradas doações externas como forma de “garantia” dos equilíbrio­s orçamentai­s que deveriam contar com as gritantes calamidade­s.

Quando vi o Presidente João Lourenço no meio do deserto, com tempo suficiente para vivenciar as dores alheias, entendi que o país é mesmo outro. “Caem assim os pedestais do poder”, disse alguém que me é próximo e com toda razão. São momentos que, como esse, enriquecem os valores de condescend­ência da Nação baseado em gestos e actos de conforto que fazem muito mais que qualquer efeito do bastão absoluto. Em muitas partes do mundo os presidente­s tentam parecer seres normais, para lá das fotografia­s e manchetes dos jornais que os coloquem em melhor posição nas sondagens. Rejeitam plenamente o poder absoluto que os torna em seres especiais, sempre numa atitude zangada, e, o pior, de ouvidos muito sensíveis. Muitos líderes não se enxergavam em cobrar dos eleitores o “custo dos seus sacrifício­s”, quando poderiam, “muito bem”, estar com a mão lambuzada num negócio. Acham piamente que só eles sabem o que é passar uma noite em claro: “Só de café”, por conta da gentalha que nunca os entenderá, confessava­m. O ombro a ombro do Presidente João Lourenço, leve o tempo que levar, seja uma atitude que não morra, uma prática que impele os líderes a ver o país através das almas de quem sofre, não bastam os brilhantes relatórios.

Quando fui preso no longínquo ano de 1976, o Onambwe, chefe da Segurança de Estado, virou-se para mim e disse com o coldre à mostra: “Você não deve escrever, já temos o Poeta Maior”. Eu, descalço, andrajoso e algemado. Desde esse dia da nossa infância política, senti-me muito triste, angustiado pelo castigo por cada verso que escrevi. É essa descrença que me faz desprezar os políticos que acham que só eles podem pensar, e, ou inculcar-nos o mais severo vazio para que só os seus verbos tenham sentido. Ele nunca me soube ouvir e entender, porque o seu ódio estava a criar em seu âmago a maior escuridão que um político pode viver. Ouvir demoradame­nte as gentes do deserto pode fazer toda diferença, ajuda a corrigir as políticas, apanhar os saberes antigos dos aldeões que conhecem as plantas, que resistem, mas, acima de tudo, fazer com que o Executivo, um velho sistema de decisões, leve as soluções que mudem esse ciclo de dor que abana o hino.

No filme “O Rapaz que Prendeu o Vento”, película de estreia de Chiwetel Ejiofor, nomeado para um Óscar, uma história verídica que retrata a seca que assolou o Malawi, em 2001, e que arrasara a aldeia, o povo sem forças em coro acusa: “Ninguém nos vem ajudar”. Os celeiros vazios aconselhav­am uma só refeição. O pai, desolado, perguntou aos filhos e à esposa que refeição preferiam fazer para enganar o estômago. “O jantar, porque o estômago não pode dormir vazio”, sugeriu a esposa. “O pequeno almoço, gosto”, respondeu William. Existem muitas cenas do filme que nos comovem, porque são belas as lições de vida que nelas encontramo­s. A câmara de Ejiofor capta todos os ângulos da vila, e o filme, sem ser fastidioso, é muito dinâmico e poético. Suas lentes conseguem belas fotografia­s que realçam os detalhes: a vida. Mesmo nesse quadro dantesco de uma seca longa, o presidente do Partido da União Nacional, com fito na reeleição, não teve qualquer vergonha na cara ao namorar, em troca de nada,o voto aos famintos, aldeões sem onde cair vivos. Implorou no comício que votassem nele, apesar de não se interessar pelo seu sofrimento. O chefe da aldeia, ao tomar a palavra, sem papas na língua, acusou: “A máquina económica não está virada para nós, o povo”, aplausos e acrescento­u: “Um Presidente que finge ver a catástrofe sem fazer nada, não terá o nosso voto”. “Precisamos de subsídios de emergência”. O chefe da vila, garbosamen­te vestido, é violentame­nte retirado do palco pelos seguranças do palácio. É espancado atrás do palco, enquanto as dançarinas da cidade subiam o tom grave dos cânticos, só para que ninguém se apercebess­e da barbárie. Na refrega entre os camponeses e os verdugos, o chefe da aldeia veio a falecer um mês depois do desafio da sua vida em falar por todos.

É o William Kamkwamba, hoje engenheiro, que com a sua abnegada aposta, aos 13 anos, convence o pai a destruir a sua bicicleta, uma relíquia que igualmente oferece a estatura de distinção social às famílias pobres, para construir o moinho de vento. Juntou ainda outros recursos catados na lixeira da vila: tubos para fazer as quatro pás, fios de cobre e tantos outros artefactos que deixaram erguida a engenhoca.

Com ela retirou do fundo do poço a água que serviu para irrigação do cultivo e salvar as famílias. Hoje, os habitantes de Kasungu, orgulhosos pelos feitos do seu filho, abrem sulcos na terra e plantam sem esperar pela chuva. Acreditam que “Deus é como o vento, toca em tudo”.

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