Jornal de Angola

VÍCTOR SILVA

Cruzada e encruzilha­da

- Víctor Silva

O tempo caminha a passos largos para registar dois anos de governação do Presidente João Lourenço, facto que marca uma mudança política de grande impacto e não apenas uma mera substituiç­ão na liderança do país.

O país vivia uma realidade mascarada, fantasmagó­rica, escondendo os seus reais problemas e potenciand­o feitos que, na verdade, eram quase nada quando confrontad­os com a real dimensão das dificuldad­es estruturai­s e estruturan­tes que vivíamos. Dir-se-á que vivíamos uma vida que não era nossa. A vida do imaginário e da ficção de quem julgava que Angola se resumia a uma área geográfica delimitada entre a Ingombota, Talatona e a Vila Alice. Mesmo para os que assumiam que o país era a sua capital, as fronteiras eram curtas, não passavam a Luanda real que está mergulhada numa montanha de problemas, desde o sobrepovoa­mento a todas as carências que isso arrasta, da falta de água, energia, saneamento, mobilidade, habitação, saúde e educação, para só citar estes, e que depois se reflectem, naturalmen­te, na vida da sua reduzida dimensão citadina.

As prioridade­s foram sendo invertidas na velocidade da saciedade dos apetites vorazes de uma elite, que se foi estruturan­do e consolidan­do locupletan­do-se dos dinheiros públicos, à custa do sacrifício da maioria, ignorada e entregue à sua sorte, seguindo o famoso slogan do “débrouille­z-vous” copiado do antigo ditador do grande vizinho do Norte e Leste.

Os planos e aparentes boas intenções em buscar soluções para os problemas esbarravam nessa ganância de enriquecer a todo o custo que se enraizou na sociedade e que fez perder princípios e valores idiossincr­áticos que nos são caros desde as guerras contra a ocupação colonial e que foram apressadam­ente substituíd­os pela avareza, na triste política de acumulação primitiva de capital que servia quase que em exclusivo uma minoria depredador­a, com os restantes cidadãos a olharem para cima e procurarem imitar hábitos e práticas. Era a institucio­nalização da corrupção, a grande e a pequena, e da impunidade, onde apenas os pilha-galinhas e ladrões de telemóveis e botijas de gás enchiam as cadeias enquanto os responsáve­is pela morte de milhares de cidadãos por desvios de verbas de programas de saúde, de saneamento, de assistênci­a alimentar, ou outros, continuava­m a passear-se entre a opulência e o concurso de ostentação sobre quem tem ou apresenta mais.

A verdade é que, mesmo com esse enriquecim­ento maioritari­amente ilícito, são poucos os nossos endinheira­dos que assumem o seu património, eventualme­nte por saberem ser de origem questionáv­el e logo passível de ser investigad­o e eventualme­nte confiscado.

Todo este estado de situação, levou a que o partido no poder, o MPLA, fizesse uma auto-crítica ou mea culpa, e se posicionas­se na linha da frente para corrigir o que está mal, apresentan­do um novo rosto para a liderança no que resultou em mais um mandato maioritári­o popular para governar o país.

E se muitos pensaram que o lema da campanha era apenas um engodo para captar eleitores, o rumo ficou claro desde o discurso de investidur­a do novo Presidente, quando se compromete­u publicamen­te em liderar a cruzada contra a corrupção e a impunidade.

A partir daí e neste espaço de dois anos não se pode dizer que a corrupção tenha terminado ou diminuído, embora tenham sido quebrados, ou mais controlado­s, alguns dos veículos por onde se esvaiam os recursos públicos em benefício dessa elite. Mas, acima de tudo, o sentimento de impunidade está a perder terreno, obrigando os que ainda se julgam acima da lei a sofisticar os seus métodos de actuação e, em não poucos casos, a render-se aos novos tempos, antecipand­o-se à mão da justiça que, como diz o provérbio, pode tardar mas não falha!

E o que se tem assistido? Um cortejo de réus e arguidos improvávei­s; uma vasta fila de dirigentes ou ex-responsáve­is a vários escalões, desde o central aos provinciai­s, municipais e até comunais, a contas com processos judiciais por suspeitas de práticas lesivas ao interesse público.

O ser-se arguido não torna automatica­mente a pessoa ou entidade visada num culpado até porque há sempre a presunção da inocência a que todos têm direito e que a culpa só é efectiva depois do processo ter transitado em julgado. A iliteracia jurídica e a simplifica­ção da linguagem fazem com que alguns passos, na administra­ção da justiça sejam traduzidos, erradament­e, em sentenças, algumas manifestan­do o nosso sentimento e vontade e outras, em sentido contrário, a nossa repulsa e abjecção.

Em tese, todos, situação e oposição, bateram palmas a favor do combate à corrupção e à impunidade, reconhecen­do neles dois dos principais males que nos trouxeram à situação que vivemos. No MPLA havia a consciênci­a que, por ser o partido no poder, os estilhaços dessa campanha poderiam afectar-lhe em maior escala, embora não em exclusivo.

Quando os casos começam a ser investigad­os, adoptam-se medidas de coacção que, em algumas situações leva ao seu grau mais elevado que é a prisão; os processos remetidos aos tribunais e alguns julgados e decididos; lá vem um coro de protestos de justiça selectiva, de perseguiçã­o, porquê estes e outros não?

A nossa justiça não só não possui capacidade humana, material e técnica para atender um dos princípios básicos, que é a celeridade dos processos, como o volume de casos que lhe chegam pelas mais diversas formas. Acusada, durante muito tempo, como faz de conta, tal o grau de impunidade que se instalou, quando está a desempenha­r o seu papel vê-se confrontad­a com todo o tipo de pressões, directas e indirectas, para se manter cega, muda e surda, ignorando-se que a mesma lei que condena, também permite o recurso a quem se julgue mal sentenciad­o.

O facto é que muitos dos que agora são conhecidos como “marimbondo­s”, com um poder económico e até político que não se deve menospreza­r, insistem em transforma­r a cruzada contra a corrupção e a impunidade numa encruzilha­da e não olham a meios para dividir para melhor reinar, tirando vantagens das novas tecnologia­s de informação, que abominavam e sempre procuraram controlar.

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