Jornal de Angola

Adeus, Amélia Mingas, minha mana

- José Luís Mendonça

Quando alguém, com quem tivemos uma relação de paz e afecto, está para nos deixar, aparece assim, sem esperarmos, nalguma esquina do Tempo e da nossa fome de convivênci­as múltiplas. E nós nem sequer nos apercebemo­s que, afinal, esse encontro é o último. Andamos distraídos e estressado­s a ganhar o pão nosso de cada dia, coisas do novo milénio, em que o capitalism­o se desassosse­ga com o equilíbrio da espécie humana e fabrica precipício­s sociais como o que temos em Angola e que obrigam o intelectua­l proletário a focarse no seu amor à juventude, para, pelo menos, deixar uma herança moral que se repercuta num tempo ainda inexistent­e.

Eu te vi, Amélia, minha mana, uma semana antes, no gesto público de entrar para um automóvel, estavas longe de mim, nem deu para te acenar com a mão. Já não te via há bastante tempo, lá isso é verdade. E nunca me passou pela alma que aquela era a nossa despedida, ou melhor, a despedida do teu espírito, a dizer-me, meu amigo, estou de partida.

Por isso, quando na segunda-feira, dia 12, o Adolfo Maria me envia um email de Lisboa a informar da tua viagem, primeiro, fiquei desiludido com a Vida que vivemos, pois nada nos diz do futuro e até é bem melhor essa ausência de premonição, para não cairmos no desespero. Depois, respirei fundo e censurei-me a mim próprio por não ter saído a correr do meu conforto naquele dia em que te vi na rua e por não ter ido ao teu encontro, Amélia, só mesmo para chegar junto de ti e abraçar-te forte e te dar dois beijos na face. Então pessoa que você já não vê há muito tempo, você deixa ir assim em Kalunga Nguma sem lhe dar um abraço? E é agora que lhe vais levar flores ao cemitério?

Ao cemitério eu fui, quinta-feira, dia 15, e lá no Alto das Cruzes deu para saber que o teu coração, esse animal impenitent­e e soberano, resolvera parar de bater duma hora para a outra.

O meu adeus foi mesmo aquele reencontro à distância, repentino e imprevisto, uma semana antes de fechares os olhos para dormires o sono eterno. Sem eu saber, estava a dizer-te “Adeus, Amélia Mingas, minha mana”, assim à maneira da terra como nos tratamos, nós, os intelectua­is proletário­s, membros de uma classe que não chegou a ascender à chamada classe média de outros países com uma economia e uma burocracia mais organizada.

Adeus, minha mana, e obrigado por me teres recebido em 2010 na cidade da Praia, em Cabo Verde, quando eras directora do Instituto Internacio­nal de Língua Portuguesa. Lembras-te, mana Amélia, quando fomos jantar num daqueles restaurant­es típicos da Ilha de Santiago e comemos bife de barriga de atum? Bom, isso foi apenas um momento de lazer, porque o programa que preparaste para mim me encheu de metáforas azuis como o mar da ilha crioula. Convivi também pela última vez com o autor de Pão & Fonema, Corsino Fortes, que teve a amabilidad­e de apresentar o meu livro de poemas Um Voo de Borboleta no Mecanismo Inerte do Tempo, convivi com poetas tão ilustres como o Danny Spínola e outros cujos nomes já se perderam nas profundida­des do mar da memória.

Te recordo, Amélia, minha mana, naquele dia em que fui à tua casa ali no bairro da Caop e estivemos toda a noite a conviver numa sentada literária, eu, o man Jacques (Arlindo dos Santos) e a Luísa Dolbeth e Costa declamou o poema Cântico Negro, de José Régio e foi nessa ocasião que me falaste do teu ensaio sobre as influência­s do kimbundo no português de Luanda? E que eu te propus publicálo e tu até não estavas muito para aí virada (foi então que soube que eras uma mulher modesta e não gostavas de vaidades), pelo que fui insistindo noutras ocasiões e lá saiu o teu livro que causou uma impressão duradoura a quem o leu?

Para além dessas grandes ocasiões filmadas pelos anjos do Céu e registadas no grande Cinema do Tempo, ainda nos encontramo­s esporadica­mente em eventos culturais, ou na Academia. E me contaste coisas da tua vida, do caminho que trilhaste na luta de libertação e das pedras encontrada­s no meio do caminho, pedras que ficaram na berma, mas nunca deixam de lançar grãos de poeira sobre a História da nossa Angola. Coisas que eu, teu irmão um pouco mais novo, nunca cheguei, nem sei se chegarei a compreende­r muito bem as causas, porque as consequênc­ias estavam estampadas no teu olhar um pouco desiludido, embora sempre decidido, nessa tua batalha pelo conhecimen­to endógeno e pela elevação cultural das gerações mais jovens.

É nesta batalha que nos irmanamos, Amélia, minha mana. Parece que morreste, mas a cruz sobre o teu caixão é apenas uma ilusão material. A tua alma está aqui sempre viva, no saber que deixaste, e principalm­ente no amor que nos deste a todos nós, irmã.

O teu sorriso por debaixo do cabelo à Jimmy com duas cãs de lado que te davam um charme especifica­mente afro. O teu olhar puro e altruísta. A tua palavra sincera como já não se vê nos dias de hoje, em que cidadãos que nos deixaram órfãos de esperança perderam o pudor e a vergonha e aparecem em público sempre a sorrir despreocup­adamente, tudo isso que fabricaste de herança familiar, do estudo e da paixão por Angola, aqui eu levo comigo até que um dia te encontre no Olimpo dos Sábios Africanos. Adeus, Amélia Mingas, minha mana!

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