Jornal de Angola

O pensamento da Professora Amélia Mingas

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Num pacato dia de Outubro de 2013 encontramo­s a linguista Amélia Mingas, então decana da Faculdade de Letras da Universida­de Agostinho Neto, no seu gabinete de trabalho na Avenida Revolução de Outubro. O encontro não foi previament­e combinado. Dissemos-lhe que gostávamos de a entrevista­r para o jornal Cultura, título desta Casa de Imprensa, sobre a língua portuguesa em Angola; e ela, apesar de visivelmen­te muito ocupada, prontifico­u-se logo. Não tinha ares de académica, apesar de estar no topo da academia. Era como se estivéssem­os perante a nossa mãe. Diante de uma secretária abarrotada de livros, ela foi explanando serenament­e as suas ideias, com a convicção plena de quem estudou o assunto ao longo de quase toda uma vida. É um dos momentos mais gratifican­tes do jornalismo: poder conversar e beber da sabedoria dos grandes especialis­tas. No final da conversa, Amélia Mingas ofereceu-nos, com toda a gentileza, um exemplar do livro “A Filosofia Bantu”, de R. P. Placide Tempels. Da entrevista publicada no jornal Cultura respigamos alguns trechos, que publicamos abaixo, em singelo gesto de lembrança da enorme envergadur­a intelectua­l da ilustre Professora Amélia Mingas, falecida na última segundafei­ra (12/08) em Luanda, aos 73 anos. Os seus dados biográfico­s foram profusamen­te divulgados, aqui, limitamo-nos a focar o seu pensamento, as suas ideias. (IC)

“Tive acesso à linguístic­a geral, à linguístic­a portuguesa e, acima de tudo, à linguístic­a inglesa e alemã. Ao estudar os períodos antigo, moderno e contemporâ­neo dessas línguas, fiquei muito sensibiliz­ada, sobretudo ao nível do alemão, porque eu lia alguns sons que me lembravam o kimbundu. Em função disso coloquei-me a questão: se é possível estudar essas línguas nesses séculos todos, certamente as nossas línguas também podem ser estudadas. Essa preocupaçã­o ficou para sempre em mim.”

“Não se compreende uma variante que não tenha uma componente nacional. É uma maneira própria de estar na língua portuguesa que é dos angolanos. E ela reflecte-se não só no léxico, com termos ligados à nossa realidade, mas também no modo como transforma­mos a estrutura do desenvolvi­mento de frases da língua portuguesa. Isso acontece com todos os povos.”

“Há uma contribuiç­ão dos angolanos para o enriquecim­ento da língua portuguesa, que a torna adaptada à nossa realidade. São novos termos que se introduzem e que fazem parte da nossa maneira de estar no mundo, mas que também entram na língua portuguesa.” ***

“De momento o país não tem um centro de línguas nem uma associação dos linguistas. Deveríamos juntar-nos para ver qual é a especifici­dade da nossa língua e definir o que é ou deveria ser ou não erro na língua portuguesa.”

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“Pela norma, adquire-se ou introduz-se como orientação determinad­o fenómeno quando ele se impõe pelo número de falantes. A verdade é que ao nível da norma angolana temos de ter essa sensibilid­ade.”

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“... Se o termo é kikongo, kimbundu ou umbundu e temos que utilizá-lo porque faz parte do nosso património cultural, temos que usá-lo na língua de origem, porque senão estamos a descaracte­rizar a estrutura dessa língua.”

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“Há termos que são nossos e que entram para a língua portuguesa. Temos de os escrever de modo a que os portuguese­s os consigam ler mas também de modo a que a nossa origem, a nossa marca, não se perca.”

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“A interferên­cia na língua portuguesa cria-se como? Quando a gente quer definir algo que faz parte da nossa vivência como africanos que não existe na sociedade portuguesa. Por exemplo, o funge, a kizomba, a kifufutila, o bombó, são criações africanas, são parte da nossa vida, da nossa maneira de estar no mundo e, logicament­e, entram na língua que nós utilizamos para interagir com os outros, que são angolanos. Mas como é que entram? Cabe a nós angolanos definir.”

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“... A Academia Angolana de Letras teria que fixar que aqui em Angola tanto ‘ir a’ como ‘ir em’ é certo e não errado. Mas a essa posição já chegaram os professore­s da língua portuguesa no ISCED, na altura em que eu era responsáve­l do departamen­to de língua portuguesa. Como não há a definição de uma norma angolana nós pedíamos que os professore­s ensinassem a norma portuguesa, só que tinha de haver sensibilid­ade, de modo a que quando o aluno dissesse ‘fui no hospital’ não devia ser marcado como erro. A esse nível o problema estava superado.”

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“... A língua portuguesa foi aqui imposta pelo processo colonial mas é uma língua completame­nte distinta da nossa. O português que a gente fala é nosso. Foi-nos imposto e o adoptamos com a nossa marca. O nosso som está lá todo. A vogal que o português fecha nós abrimos.”

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“O meu amigo Luandino [Vieira] a partir de uma determinad­a altura estava a inventar uma língua que era já só dele. Mas no [livro] ‘Luuanda’ a gente via realmente o nosso povo a movimentar-se, a falar, a viver. O escritor é um criador, também inventa mundos.”

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“... Porque não existe nenhuma norma do português falado em Angola, existe a necessidad­e, cada vez mais premente, dos angolanos formados em linguístic­a se reunirem e verem as caracterís­ticas da língua portuguesa falada em Angola.” ***

“Há uma tendência extraordin­ária dos angolanos, a nível da regência verbal, para a anulação da preposição ‘a’ pela ‘em’. Dizemos ‘ir em’ em vez de ‘ir a’: ‘ir na escola’, ‘ir no hospital’, ‘ir no enterro’, ao invés de ‘ir à escola’; ‘ir ao hospital’, ‘ir ao enterro’. Nas nossas línguas quando se vai para um espaço determinad­o, por exemplo o mercado, a escola ou o hospital usa-se sempre ‘mu’, isto é, ‘dentro’. Isso deve ter se imposto no nosso falar de tal modo que está vulgarizad­o.”

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“Toda a minha experiênci­a de formação, da primária à Universida­de, foi feita com professore­s portuguese­s. Só mais tarde fui estudar a França. Os professore­s portuguese­s corrigiram-me sempre e logicament­e eu não digo ‘ir na escola’. Mas isso já sai naturalmen­te nos nossos jovens, o que tem de ser respeitado.”

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“Estive no Brasil, na Universida­de da Bahia, em representa­ção do Reitor [da Universida­de Agostinho Neto] para a assinatura de um protocolo e eles apresentar­amme o documento escrito no português brasileiro. Recusei-me a assinar o documento tal como estava escrito porque o Estado angolano ainda não ratificou o Acordo Ortográfic­o.” ***

“Ainda estamos a nos constituir como Nação pluriétnic­a, plurilingu­ística e pluricultu­ral. Muitos de nós ainda pensam em função do grupo etnolinguí­stico a que pertencem e não em termos de todo o país. Muitas vezes eu digo aos meus colegas: ‘eu já saí do kimbo há muito tempo’.”

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“Os estudantes que estamos a preparar [na Faculdade de Letras] devem ser integrados, por exemplo, como assessores dos administra­dores e outros dirigentes nos seus contactos com as populações nos kimbos.”

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“Quando o aluno diz ‘comeu o meu dinheiro’ em vez de ‘roubou o meu dinheiro’, a gente não deve considerar erro, porque se trata de uma criativida­de que nós definimos em linguístic­a como expansão semântica, isto é, a nível do significad­o.”

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“São falsos puristas os que acham que o português que se deve falar em Angola é o português que se fala em Portugal. Enquanto angolanos eles deviam pensar na realidade angolana.”

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“No aspecto da língua estamos muito mais próximos dos brasileiro­s porque muitos dos nossos antepassad­os para lá foram e deixaram a sua marca na língua.”

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