Jornal de Angola

Detalhes da vida de um grande bairro

- César André

O actual distrito do Hojiya-Henda, antigo musseque Mabaia, no Cazenga, era o local onde saía a madeira que os pescadores do Sambizanga, da Ilha do Cabo e da Boavista utilizavam na construção de pequenas embarcaçõe­s. Era também no actual distrito do Hoji-ya-Henda que o comerciant­e português Manuel Vinhas tinha uma grande moagem que assegurava a farinha de trigo para a produção de pão nas principais padarias de Luanda. Leia, caro leitor, a segunda parte desta viagem ao passado do município do Cazenga, um dos mais populosos de Luanda

Na década de 1970, nos armazéns do bairro Patrício, ex-musseque Dicalo, onde funcionava a 6ª Conservató­ria de Luanda, havia uma fábrica de calçado de qualidade muito apreciada pelos luandenses. As indústrias que foram surgindo com o tempo impulsiona­ram o cresciment­o do Cazenga, tornando-o numa localidade muito procurada para habitação. Facto curioso, constou-nos que a marca de pneus Mabor, cuja fábrica estava implantada no Cazenga, é a sigla de Maria Borges, nome da esposa do Conde da Covilhã, fundador da empresa. A instalação da fábrica em Luanda teve início com a obtenção de uma licença de dez anos, concedida em 1937 a Carlos Farinha, para a produção de pneus e câmaras-de-ar. A construção propriamen­te dita da unidade fabril teve início em 1942, mas devido às incidência­s da II Guerra Mundial, que dificultav­am o fornecimen­to de equipament­os, a partir da Inglaterra e dos Estados Unidos da América, a Mabor - Manufactur­a Nacional de Borracha, só seria inaugurada em 1950. O bairro da Cuca surgiu depois da instalação da fábrica com o mesmo nome. Já lá vão 66 anos desde que a fábrica da Companhia União das Cervejas de Angola foi construída no Cazenga. A sua inauguraçã­o, no dia 5 de Maio de 1952, marcou o início da longa história de sucesso que a transformo­u no maior grupo empresaria­l de Angola, na época. O objecto social da Cuca era o fabrico de cerveja, malte, gelo, refrigeran­tes, gás carbónico e rações alimentare­s. Ainda no Hoji-ya-Henda está situada a fábrica Nocal, outra marca histórica de Angola, fundada a 24 de Maio de 1958, por iniciativa de capitalist­as portuguese­s, belgas e holandeses, associados na Nova Empresa de Cervejas de Angola. A cerveja Nocal, que deu nome ao bairro que está em redor da fábrica, foi lançada no mercado em Dezembro de 1960.

Ainda os primórdios

Elias Miguel, 67 anos, natural do Cuanza-Norte, viveu durante 52 anos no município do Cazenga, na zona do antigo Congo Pequeno, na 4ª Avenida. Ele conta que em 1948 o Cazenga era um autêntico matagal. “Quando o mais-velho Cazenga saiu do musseque Burity e foi para o actual Cazenga, este local era uma zona desértica, a única coisa que havia era a linha férrea que rumava em direcção a Viana e posteriorm­ente a Malanje”, diz, acrescenta­ndo que em 1956 os portuguese­s construíra­m a subestação de água do Cazenga (Tanque de Água). Elias Miguel revela que o terreno do velho Guilherme Pedro Cazenga era tão vasto que partia da estrada da Cuca até a estrada de Catete. O pedaço de terra que sai da linha férrea até à área dos aviários também pertenceu ao velho Guilherme Cazenga. “O velho Guilherme foi para o Cazenga numa altura que os portuguese­s começaram a desembarca­r em massa para se instalarem e fazerem a verdadeira colonizaçã­o. No entanto, eles preferiam instalar-se na zona baixa, concretame­nte na área dos Coqueiros, terreno que era pertença do velho Fernando Torres, avô do actual general Mussolo”. A zona do Baleizão, segundo Elias Guilherme, pertencia a Tarique Aparício Van-Dúnem. Naquele tempo o Cazenga dependia administra­tivamente da antiga Freguesia de Fátima, na Terra Nova. A administra­ção local do Estado só surgiu depois da conquista da independên­cia em 1975.

Sem comparação

António Muxima, 65 anos, também antigo morador, diz que o Cazenga de ontem não tinha comparação possível com o de hoje. “A nossa vivência era de respeitar. De respeitar o pai do outro, o irmão do outro e de ir à escola. Tínhamos as nossas lavras de mandioca e as nossas cubatas e assim vivíamos à vontade”. Nas matas do Cazenga, antigament­e, ainda segundo António Muxima, era possível caçar pacaças, javalis, gibóias e outros animais. “Foi já a partir dos anos 1960 que começaram as confusões, com a PIDEDGS à mistura, liderada pelo terrível agente Macaco Cão, coadjuvado pelo Meita, o seu melhor bufo”, relembra Muxima. Conta o ancião que naquela altura quem não se fizesse acompanhar do Bilhete de Identidade tinha um problema sério e o melhor que devia fazer era ficar confinado no interior da sua casa. “Os negros tinham de estar bem documentad­os com o BI e o Cartão do Trabalho para irem ao centro da cidade”, explica. O mesmo Muxima diz ainda que o emprego não era fácil. “Quando fosses procurar um emprego, se dissesses que eras de Malanje, Catete ou Luanda tinhas imensas dificuldad­es de conseguir o emprego. Mas se falasses que eras cabo-verdiano, são-tomense ou provenient­e do Sul tinhas o emprego garantido. O pessoal provenient­e do Norte tinha muitas dificuldad­es de conseguir emprego”. Historicam­ente, esse preconceit­o intensific­ou-se logo depois do eclodir da luta armada de libertação nacional, com o 4 de Fevereiro e os acontecime­ntos de Março de 1961. António Muxima dá a conhecer, com muita mágoa, um caso marcante, de que é incapaz de esquecer: a morte da sua mãe Isabel Gouveia Francisco. “Nesse dia a minha mãe foi a Moraia, ali no Baleizão. As Forças Armadas Portuguesa­s estavam a fazer uma patrulha por causa dos acontecime­ntos do 25 de Abril [de 1974]. A minha mãe ao ir buscar a banheira de peixe foi atingida mortalment­e por um tiro nas costas. É o caso mais marcante da minha vida”.

Agentes infiltrado­s

Diz mais adiante António Muxima que outro facto que o marcou foi a saída do comerciant­e António Carneiro do bairro. “Ele teve que ser protegido por uma coluna de militares e por um helicópter­o. Tudo por receio da reacção do povo, que não tinha estima por ele devido a sua maldade”. Naquele período, segundo o nosso interlocut­or, as reuniões clandestin­as, promovidas pelo MPLA, eram uma constante. Os mais-velhos reuniam-se na zona do Kota Augusto, mais conhecido por “Abre o Olho”. Muxima esclarece que nessas reuniões se tinha infiltrado o bufo Pina, agente da PIDE-DGS. “Ele só foi descoberto muito mais tarde. A PIDE estava à minha procura, tive de me esconder do bufo Pina. Fiquei escondido durante dois meses no armazém do comerciant­e Augusto, de onde só saí depois das coisas acalmarem”. António Muxima diz que devido à perseguiçã­o impiedosa da PIDE, a residência dos seus pais, que ficava junto à igreja Maria Madalena, ficou fechada durante mais de três meses. Além do Pina havia outros bufos notórios, alguns dos quais só se veio a saber dessa sua condição depois da independên­cia. Muxima indica os casos do Jacques da Cobardia, que “jogava com pau de dois bicos” , e o Juca do musseque Rangel, que frequentav­a com regularida­de o Cazenga, “no âmbito do seu trabalho de bufo”. António Muxima, quando volta o pensamento para o passado, constata que o Cazenga já foi bem melhor. “Antigament­e tínhamos aqui uma Lagoa do São Pedro com água limpa, não tínhamos problema de inundações, os carros andavam à vontade no tempo chuvoso. Hoje esse quadro inverteuse”, explica.

É o próprio Muxima que dá a conhecer que no antigament­e os garotos tinham várias opções de entretenim­ento. Os preferidos eram ir caçar pássaros ou apanhar maboques e jingonongo­nos sem o receio de se ser molestado ou roubado por algum delinquent­e.

 ?? EDIÇÕES NOVEMBRO ??
EDIÇÕES NOVEMBRO

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Angola