Estamos a ser invadidos por outros ritmos e sonoridades
Patrícia Faria procede hoje, a partir das 7h, na Praça da Independência, à sessão de venda e autógrafos da sua terceira obra discográfica, intitulada “De Caxexe”. Mais tarde, às 14h, segue para o Belas Shopping, para outra sessão de venda e autógrafos. A “Negra Caliente”, como é carinhosamente chamada, diz, na entrevista concedida ao Jornal de Angola, que, passados dez anos de jejum discográfico, “De Caxexe” justifica “alguém que vem como quem não quer nada” Volta com “De Caxexe”, quase dez anos depois. O mercado mudou muito?
É um sentimento de muita expectativa, de dever cumprido, que se calhar se vai consolidar ainda mais no momento da venda, de acordo com a receptividade das pessoas que acorrerem ao acto. Estamos a imprimir um ritmo diferente do que utilizávamos há vinte anos. Ou seja, nos dias de hoje muita coisa se alterou, afectando, naturalmente, a forma de nos comunicarmos. Isso se reflecte no modo como se faz passar a mensagem sobre o disco. Nos dias de hoje trabalha-se muito mais com as redes sociais, transversais a várias áreas da sociedade, desde a política à cultura. Então, adaptamo-nos um bocadinho a essa nova dinâmica, que, no fundo, não é tão nova assim. Se calhar nós é que só interviemos agora, porque ficamos muito tempo ausentes.
Ainda emociona-se às vésperas de um lançamento?
Ressurgimos, de facto, com um misto de emoções nos invadindo, porque de um tempo a esta parte a gente tem vindo a tocar em feridas, a fazer retrospectivas de um trabalho já feito por quase duas décadas. Aliás, tivemos que fazer este trabalho para poder, digamos, traçar a melhor estratégia para tirá-lo “de caxexe”. Então, feito o trabalho de casa, chegou a hora da prova, que será agora, neste domingo, a ver como seremos avaliados, não obstante pensarmos termos feito, e bem, o nosso trabalho de casa, e termos nos preparado bem para este dia.
Há quem interprete isto de forma rigorosa e o trata por hiato. Porém, parece ser mais um período de maturação. No fundo, o que foi de facto este intervalo de dez anos?
Sábio não é quem não aproveita o seu tempo para crescer. Eu posso dizer que concordo com aqueles que definem estes dez anos como processo de maturação da minha figura artística. Recuso-me a deixar o tempo passar sem que possa tirar dele o melhor que nos pode oferecer. E eu acho que essa maturação é algo de que eu não abdico. E isso vai se reflectir neste trabalho. Por outro lado, consciente da minha responsabilidade social, enquanto cantora que informa e tem toda a intenção de continuar a carregar esta genética cultural típica de Angola, a despeito do que muita gente se tenha dado a liberdade de pensar, conseguimos, com muita ousadia, fazer este disco num momento em que o semba não é uma das grandes referências comerciais.
Então, é um disco de Semba…
Bem… é um disco, como direi, de Angola e com muita angolanidade. Fundamentalmente, o pendor é o semba, porque é a minha escola. Mas, como costumo dizer, o artista é uma esponja. Ele absorve muito do que sente e vive, e como jovem eu não estou alheia ao processo de influências que a nossa música sofreu, embora seja também muito conservadora.
Conservadora?! Como assim, Patrícia?
(Risos!) Tento dizer que a essência, a matriz, tem de ser, de facto, preservada. Nada nos impede de nos lançarmos para novos voos e colher outros frutos que venham agregar valor ao trabalho que estamos a fazer. Mas é importante que a gente saiba, de facto, quem somos, para que possamos defendermonos e não permitir que a nossa matriz seja desvirtuada, embora sejam reais as possibilidades de influências. Eu não posso defender a ferro e fogo aquilo que eu não conheço. Porque facilmente me deixarei levar por outras situações e influências, desvirtuando aquilo que me pertence, e muitas das vezes, até, de forma inocente. E, no que diz respeito à música angolana, nós assistimos a isso. São muitos os casos em que nos deparamos com situações em que já não sabemos, perdoem-me pela expressão, “dar nomes aos bois”, no meio destas influências todas que vamos sofrendo. Aliás, o mais dramático é vermos que nós não estamos a assumir esta dita herança cultural que deveríamos herdar com maior orgulho. Estamos novamente a ser invadidos, fortemente, por outros ritmos e sonoridades.
Se posiciona contra?
Não tenho nada contra, até porque defendo que a alma do artista é uma alma livre, de esponja. Mas nós temos um compromisso com aquilo que, culturalmente, nos identifica. É o nosso DNA, é a nossa matriz, a nossa identidade, e cabe a nós, enquanto herdeiros, darmos continuidade ao que já foi produzido, sob pena de amanhã não poder chegar aos nossos filhos. Infelizmente, isso é tão patente que já até nós ficamos com dúvidas em precisar realmente a originalidade dos produtos. Damos nomes errados a todo tipo de situação, e taxamos com expressões erradas, quer no domínio da dança, quer no domínio da cultura.
Isso abarca o resgate das línguas nacionais?
Vemos com alguma inquietação o desaparecer do domínio das línguas tradicionais, dos instrumentos tradicionais. Antes, quando pequenos, víamos com alguma facilidade tocadores de marimba e outros instrumentos tradicionais. Hoje isso é quase como que algo de muito especial, vermos um grupo folclórico a apresentar-se. Porquê? Porque não estamos a transmitir conhecimentos para as novas gerações, que sabem tão pouco de história como também sabem muito pouco sobre o que realmente nos identifica. Voltamos ao tempo em que quem cantava semba ou outros ritmos (popular e folclórico) estava fora de moda. O acusam de ser alguém que está descontextualizado, que canta e interpreta lixo.
Isso justifica o título “De Caxexe”?
(Risos!) Não! O que justifica o “De Caxexe” é este chegar de mansinho, depois de dez anos de ausência e jejum. Alguém que vem como quem não quer nada, embora com uma vontade enorme de dar a beber e a conhecer tudo aquilo que produziu. O disco comporta 18 faixas musicais. Quando a gente sai do jejum não pode cair para o banquete assim de cara. Trago um banquete, e o dou calmamente, de caxexe, como quem não quer nada.
Como estão fatiadas estas 18 faixas musicais?
Teremos muito semba. Desde o semba de matriz, semba dos conjuntos, ao semba mais estilizado. Daí ter reunido compositores mais conservadores, como são os casos de Xabanú, Guilhermino ou Bonga, e socorrer-me de compositores jovens, como são os casos de Heavy C e Punidor, referências actuais, que trazem nas suas propostas laivos de influências não só de semba, mas também de kizomba, que também advogamos que é nossa. Trago tudo isso para este disco, num cenário que quero como reflector daquilo que são as nossas vivências e influências culturais, mantendo o foco na essência.
Citou apenas compositores masculinos. Esqueceu-se de alguma senhora?
(Risos!) Não esqueci. Olha, curiosamente não temos. Infelizmente, muito daquilo que eu queria que esse disco
trouxesse, eu tive de colocar de parte. Porque a toda hora iam surgindo composições, tanto que a última, que por acaso foi feita por uma mulher, a professora Rosa Roque, eu não consegui colocar no disco. É uma das compositoras que eu cresci a interpretar, e teria sido um prazer muito grande. Mas havia necessidade de tirarmos o disco, e deixo esta composição para um próximo projecto.
Ou seja, apenas “tu e eles”?
Sim. A única compositora feminina do disco sou eu. Tenho também a intervenção, na composição de músicas em kimbundu, da minha mãe e da própria Silvana Joaquim, que fala muito bem o kimbundu na nossa Rádio Luanda.
Não é a primeira vez que compõe?
Não. Desde o “Eme Kya” que eu tenho intervenções como compositora. No Eme Kiá musiquei um poema de Agostinho Neto (“Pra quê Chorar”) e compus o “Minha Farra”.
Como acontece o seu processo de composição em kimbundu?
Faço as composições primeiro em português, só depois, já com elas, eu as procuro transportar para o kimbundu. Depois seguese um outro processo, devido à métrica e ao enquadramento da letra na melodia, muitas vezes já criada.
Mas os seus conhecimentos elementares já aparecem neste processo?
Sim. Porque eu tenho uma noção superficial de kimbundu e kikongo. Então, quando me socorro delas é mais no sentido de me orientarem na expressão correcta, e é nestas pequenas coisas que vamos fazendo o trabalho de equipa.
Parece que vamos ter um disco bilingue…
Sim. Teremos português e kimbundu. Vai ser bastante interessante essa nova empreitada. Quis, à semelhança do que fiz com o Eme Kiá, abrir com um tema do folclore, neste caso é uma tchianda. E já recebo felicitações oriundas de gente do Leste de Angola, que assume ter se identificado com o tema.
Onde é que o disco foi gravado?
É um disco quase 100 por cento Made in Angola. Em momento algum ausenteime do país para fazer captação, à excepção da masterização e algumas misturas que foram feitas na Venezuela e Portugal. Fizemos também alguns sopros fora de Angola, mas tudo o resto foi feito cá, inclusive a produção do disco, que está a cargo da Xicote Produções.
Isso não beliscou a qualidade?
De maneira nenhuma. Eu acho que a tão propalada crise educou-nos o suficiente para que procurássemos alternativas mais económicas, mas sem prejudicar a qualidade. A ideia foi esta, porque não tínhamos muitos recursos, tão pouco divisas para que fizéssemos incursões permanentes fora do país. Olha que antigamente a gente saía por dois ou três meses para fazer captações em Portugal. Na ausência desta possibilidade, tivemos que fazer recurso ao que temos em mão, e o resultado é este disco que possui uma qualidade que considero à dimensão da Patrícia Faria.
O escritor e jornalista KajinBangala aponta Rosa Roque como a maior compositora viva da música angolana. Como vê hoje a intervenção das mulheres na composição, visto que muitos músicos se socorrem da consultoria das senhoras?
Olha, o processo criativo é muito sensível, e a criação não se impõe, ela flui naturalmente. Já houve vezes em que perguntava à professora Rosa qual era o seu segredo, e ela simplesmente dizia que a música brincava com ela, os sons e imagens assaltavam-na, a invadiam. É um processo natural, e, com passar do tempo, mais fluído fica. De facto, se calhar, as senhoras precisam, não sei bem, de maior motivação ou incentivo.
Mas há senhoras por detrás de grandes canções e que não receberam os créditos pela autoria…
É verdade. Por exemplo, o próprio Bangão reconhecia que era a sua mulher quem o ajudava em muitas composições. Aliás, o próprio Bangão me confessou que o “Pacheco” é uma composição conjunta entre ele e a sua mulher, a Dona Felipa.
Elas nunca aparecem. Porquê?
Não sei. Quase nunca aparecem. Mas acho que se pautam por um certo conservadorismo. Porque muitas destas compositoras remontam de um outro período, caracterizado por uma "outra" educação. A moral delas educa-as a deixar que os homens assumam, receando não ficar bem na pele delas. E muitas das vezes aquilo que elas retratam na composição choca com a sua figura de mulher, beliscando valores que elas eventualmente defendem. Na verdade, elas não estão apartadas do direito de opinarem sobre os vários fenómenos sociais à sua volta. Um caso que também deve ser referenciado é a compositora Fató, que compõe para muitas figuras masculinas e poucos sabem disso. Penso que deveríamos quebrar alguns tabu relativamente a isso.
Sente-se tentada um dia a tirar um disco com canções de compositoras angolanas?
É muito sugestivo. E penso que vou fazendo um cálculo para se perceber, de facto, o real valor das compositoras que o país tem. Não falo de mediocridade, de canções que não nos agregam valor algum, mas sim de compositoras de verdade, como é o caso da professora Rosa Roque, uma das poucas senhoras que dá a dançar músicas bem estruturadas, resultantes de um aturado trabalho de pesquisa.
Falando em expectativas… É o seu regresso aos discos?
É o meu regresso aos discos, mas não aos palcos. Porque o artista está permanentemente no activo, a menos que seja assolado por uma situação que o impeça. Mas é o meu regresso aos discos, e espero que este se traduza também como um incentivo aos promotores culturais, para que, de facto, sejam menos exclusivos nas suas escolhas. O país tem muitos artistas que estão a morrer em vida, porque não lhes é dada a possibilidade de levar com dignidade o pão para a sua casa.
Explique-se melhor, Patrícia…
Mais do que colocar um disco no mercado, o que quero é, de facto, que haja igualdade de oportunidades para todos os artistas. Angola é um país que oferece uma multiplicidade de ritmos, e acho que os nossos promotores culturais devem ser mais abrangentes. E penso que deve haver uma política de Estado que venha a regular esta actividade, apesar de estarmos numa economia que se tem como de mercado, onde os particulares fazem as suas escolhas. Mas acho que o assunto é ainda mais grave, porque levanta a questão da nossa segurança enquanto povo. Porque a nossa identidade cultural, quando beliscada, mexe com a nossa integridade enquanto nação. A partir do momento em que começamos a ser abalados por essa intromissão, naquilo que são os nossos ritmos e padrão cultural, a interrupção da transmissão da nossa genética cultural, há que olhar para este tipo de situação de forma muito mais rigorosa.
Já desemboca nos direitos autorais…
Sim. Devemos olhar com rigor e funcionalidade para os direitos de autor dos artistas. Porque merecemos do Estado a mesma protecção e segurança que é dada aos outros profissionais de diversas áreas. O artista deve ser olhado de uma forma muito mais séria, ele não é o bobo da corte. É um profissional que merece o respeito que lhe é devido, para que possa sustentar a sua família.
A sua experiência como gestora da Casa de Cultura do Rangel “Nzinga Mbande”, permitiu-lhe ganhar um olhar mais aguçado para essas questões?
Não é preciso ir muito longe. Eu mesma sinto isso na pele. Se houvesse, de facto, a esperada segurança, quando um artista investe num disco e espera o retorno! As vendas não asseguram nada. O nosso retorno está nas aparições públicas remuneradas. Óbvio, ninguém vai querer investir num trabalho de pesquisa para nada. Todos nós queremos viver com dignidade, daí que muitos de nós estejamos emprestados a outras áreas. Muitos olham a música como um exercício parcial, quando dá, sendo que a prioridade é uma outra profissão. Desde sempre olhei este mercado com alguma intranquilidade. E isso me empurrava a ir para a advocacia, porque sabia que precisava de um plano alternativo, por mais que gostasse de cantar. O nosso panorama musical não oferece a tranquilidade que a gente gostaria de ter. É importante que o governo olhe com alguma urgência para o estado actual das coisas.
Nota essa preocupação por parte dos decisores do sector?
Nós, pelo menos, vamos alertando.
E há sinais notórios?
Os sinais que recebo não são muito motivadores, desde logo quando a gente promove uma bienal que todos gostaríamos que fosse um pouco mais abrangente, que reflectisse aquilo que é a nossa matriz cultural. Enquanto directora de uma casa de cultura, olho com alguma preocupação muitos dos eventos que são promovidos pelo nosso país, sem se acautelar as diferentes sensibilidades que estes eventos deveriam ter.
Fala de empreitadas que envolvem recursos do Estado?
Sim. Mas auguramos por dias melhores. Esperamos que naquilo que pensamos sobre determinados temas e situações sobre a cultura nacional, de facto estejamos a ser ouvidos. Porque, pelo menos, deve haver esta sensibilidade por parte do pelouro que traça a política cultural em Angola.
Já houve dias melhores?
Sim. E olho com alguma tristeza, por sentir este retrocesso. Mas, enfim, nós estamos a atravessar uma crise que é geral. Penso que o sector das artes já era prejudicado mesmo nos bons tempos, e acho que agora é ainda pior. Vêse que no meio de prioridades, entre comer e ouvir música, as pessoas prefiram comer.
Mas observa que existam estratégias traçadas?
Por isso defendo que tem de haver uma intervenção do governo, com políticas bem traçadas. Porque mexer com a identidade cultural é mexer no nosso Bilhete de Identidade. Por isso, o Estado, mais do que cobrar impostos, é chamado também a colocar ordem no circo. Sentimos a necessidade de se colocar um basta aos entraves à cultura nacional. Temos de ser mais corajosos e arrumar a casa.