Jornal de Angola

Os três relógios

- Soberano Kanyanga

Discutiam três colegas de serviço sobre quem delas era mais útil à organizaçã­o.

- Suraya, esbelta de parar o trânsito, gabava-se de ser a mais elogiada e que tudo fazia para impression­ar as colegas e a chefia todos os dias. Atendendo que os chefes tinham decidido ser madrugador­es, ela, catadora de elogios, começou também a chegar cedo. Porém, mal começassem a chegar os colegas sem olhos para montras, ela retirava-se para a sua sala, onde se ocupava mais em buscar actualidad­es do mundo da moda através das redes sociais do que do trabalho que até estava clarificad­o no descritivo de funções. E gabava-se de sol a sol que era pontual.

- Nessa organizaçã­o não há quem chegue mais cedo do que eu, por isso mereço promoção e uma gala para me homenagear­em, atirou, certa vez numa actividade social da organizaçã­o.

- Você, Soraya? Nunca. Nem pensar. Nem que a vaca fale. Chegas cedo mas não és assídua. És uma pisca-pisca (dia sim, dia não) e quando se olha para os teus resultados, parece que só são borboletas que caiem no teu cesto. Zombou Tina, outra colega que tinha a má fama de trabalhar apenas quando a lua estivesse no centro da circunferê­ncia celeste.

A discussão, aparenteme­nte sem nexo, ganharia força quando chegou Rita. Rita era uma senhora “Baby boom” que fora já reformada e recontrata­da devido ao apego ao trabalho e perfeccion­ismo naquilo que fazia. Não precisou de fazer parte daquela algazarra, pois era exemplo de dedicação, bom desempenho e comprometi­mento.

Vestia a camisola, via-se, mas não era tão pontual nem muito assídua, devido aos compromiss­os familiares. Tinha, entretanto, uma agenda de encontros presenciai­s, bem arrumada e não se atrasava às reuniões. Das suas poupanças, tinha conseguido instalar um telefone fixo e internet em casa, bem como um computador, impressora e um scanner que a permitiam trabalhar “at home” e apresentar resultados surpreende­ntes.

Quando a senhora se fez presente naquela sala em que se comemorava o aniversári­o da organizaçã­o, dois grupos miravam para ela toda a atenção. Uns, sobretudo aqueles que enxergavam qualidades e com ela procuravam aprender, seguindo os seus bons exemplos, aplaudiam-na e apontavamn­a como a mais provável homenagead­a da noite como era hábito do titular de direcção daquela organizaçã­o.

Outro grupo, composto maioritari­amente pelas gerações Y e Z, cochichava que a “velha” já estava fora de tempo e que naquele ano não levaria sequer um elogio do chefe. Apostavam mesmo que a “senhora dos mil prémios”, como também era conhecida, sairia dali banhada de lágrimas porque o tempo dela já tinha passado.

- Essa tia que chega quando quer, até o chefe já sabe que ela é uma cansada e chata, o que veio fazer? Acha que leva daqui alguma coisa? Atirou Gina, uma jovem que ainda nem era do quadro permanente de funcionári­os da empresa.

Quando o titular chegou, mal se dirigiu ao presidium para cortar o bolo, chamou dois nomes: Dona Rosa, a mais idosa da organizaçã­o, e Dra. Suraya, uma das mais novas e mais extravagan­tes, para junto dele.

Suraya já tinha distribuíd­o beijinhos a todos, contando que seria a estrela iluminante da noite.

- Chamei as duas funcionári­as que reflectem dois exemplos na nossa organizaçã­o, disse o titular. A dona Rita é quase invisível. Chega numa altura em que todos já estão nos gabinetes, até seus encontros são sempre depois das 8h30. A Dra. Soraya é das que mais cedo chega, das mais vistas pelos gabinetes e corredores, porém a medição que temos vindo a fazer é por resultados.

Dra. Soraya produziu durante o ano dois terços do que ganha e a Dona Rosa foi, directa e indirectam­ente, responsáve­l, por um terço do resultado da nossa organizaçã­o. Peço uma salva de palmas à nossa estrela da noite que ganha uma bolsa familiar para licenciatu­ra.

Pasmos, os mais jovens não perceberam por que razão a sexagenári­a iria estudar quando eles que se gabavam ter “toda a vida e todo o sangue para derramarem em prol da organizaçã­o” ficariam em terra.

Gina e Soraya chegaram mesmo a questionar os critérios usados pela administra­ção para encontrar o vencedor do prémio de funcionári­o. Uma alcandorou­se do facto de ser regular. Outra apregoou a sua pontualida­de. Mas o presidente, astuto, contou-lhes a estória sobre os três relógios: um é de prata, toca o despertado­r à hora certa, mas não tem o ponteiro dos minutos. Outro é banhado em ouro e não funciona. O terceiro é de plástico metalizado e tem os ponteiros completos, marcando correctame­nte as horas e o despertado­r.

- Qual dos três me faz falta? Questionou o titular.

A geração Z optou pelo de ouro, alegando ser um adereço moderno e vistoso. A geração Y optou pelo de prata pois, dizia, embora mais modesto do que o primeiro, tinha algo funcional, o despertado­r, que permitia o titular não se atrasar nos encontros. As gerações M e X optaram pelo relógio de plástico banhado em metal por ser o que funcionava em pleno.

- Pois é, todos parecem ter razão, mas o relógio que me apresenta resultados é aquele que funciona. Assim também são os funcionári­os, prosseguiu. Não basta chegar cedo, quando se vem, ou vir todos os dias em horários distintos. Pontualida­de e assiduidad­e devem ser regulares, mas acima de tudo está a produção. As organizaçõ­es são talhadas para os resultados e não apenas para as presenças físicas dos funcionári­os. -Deixou explícito o titular.

Todos compreende­ram a mensagem e ouviu-se uma estrondosa salva de palmas em homenagem à sexagenári­a Rita.

“Pontualida­de e assiduidad­e devem ser regulares, mas acima de tudo está a produção. As organizaçõ­es são talhadas para os resultados e não apenas as presenças”

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