Jornal de Angola

As atribulaçõ­es de uma pobre moeda

As falhas de “sistema” e as enchentes nos bancos fizeram emergir nos mercados informais de Luanda os “TPA alternativ­os”, de “serviço”, com utentes que cobram percentage­ns adicionais que rondam o roubo, numa engenharia financeira que fere a legalidade

- Guimarães Silva

O kumbú é bom e nosso amigo quando está no bolso. Disponível para as loucuras do dia, para agradar aos próximos ou apostar em algum despesismo, que faz com que nada sobre. Há dias, senti-me impotente para defender o nosso Kwanza, a nota doméstica, do pagamento de salários e mil e outras utilidades adicionais. A minha invalidez não se deveu ao desgaste, que, pelas forças do mercado, se tornou débil para a liquidez. A causa foi a violação do seu estado físico.

Uma moeda de 100 kwanzas, a bronzeada muangolé, chegou-me às mãos descaracte­rizada pela agressão humana ou por acidente. Via-se que o uso de fogo ou outro agente químico tentou “despi-la” da cor e formato originais. A moeda de 100 kwanzas apresentav­a-se algo preta, maculada com mostras de ter sido colocada no fogo para derreter.

Com ela em mãos, apelei aos meus botões para consolo. Questionei das razões. Dos números que estariam naquela situação. Se seriam só as moedas de 100. Debalde, sem resposta. Passei-a para pagamento da corrida do táxi. O cobrador, por sua vez, entregou-a a outro passageiro, que de imediato, atirou: "Que moeda mais sem graça, isto é mesmo kwanza?", ao que o 'cobele' retorquiu: "nunca viste dinheiro assim? Não tenho outro. Não fui eu que lhe queimei."

As moedas têm tido fins e utilização pouco respeitáve­is. Alguns cobradores de táxi atiram-nas para o chão para pagar os lotadores chatos e aproveitad­ores. Há garotos, uns mais mimados que outros, que apostam em recolhê-las para encher os mealheiros, na vã esperança de armazenar riqueza para a velhice, retirando-as assim de circulação.

Num passado recente, choveram acusações, por parte de certa individual­idade, de que elas estavam a ser utilizadas para o fabrico de jóias. A superstiçã­o toma igualmente conta dela. Apanhar moedas alheias ao léu é considerad­o perigo assumido e compromiss­o com o além, por risco de “mayombola”, a escravatur­a fictícia que fez a cabeça de alguns nossos antepassad­os, possuídos de medos de feitiçaria.

A última semana do mês é a do sorriso rasgado pela ânsia do kumbú na conta. O riso surge quando as novinhas saem dos multicaixa­s. No momento, todo o cuidado é pouco, para não atrair telepatica­mente o vizinho, que, faz tempo, cobra a dívida e já agendou prazos para o ajuste de contas.

Satisfeito­s, contentes connosco quando temos o kumbú em mãos, damos largas à “riqueza” efémera, como se "a felicidade do pobre fosse durar muito tempo". Ainda assim, nos últimos dias, a sorte das notas de 5.000.00 tem sido madrasta. Há vendedoras, zungueiras sobretudo, a questionar a sua provenênci­a e autenticid­ade. Preferem as que têm cheiro e sebo de uso. Para saber se são verdadeira­s ou não, chamam sempre a atenção de uma companheir­a, supostamen­te com olhar de lince, para a inspecção e validação da mesma, enquanto nós, os donos da massa, certos de que o dinheiro é honesto, nos defendemos apelando à Bíblia: “Do teu suor comerás.”

O kwanza, que passa mano a mano pelos 164 municípios do país, sobrevive aos contratemp­os. Em Luanda, é ponto assente que uma nota rota, independen­te do valor facial, deve ser recusada e o cliente tratado com desdém. Indicam-nos, quando muito, a direcção para a bomba de combustíve­l ou os bancos mais próximos, para salvar o dia. Já por Angola adentro, mais vale uma nota com mil remendos do que mãos vazias. Ela é logo aceite e, mesmo rota, é protegida. Angola adentro conhece o esforço pelo dinheiro e o quanto ele vale, porque escasso.

O dinheiro, quer seja moeda, quer seja papel, é de uso corrente, sujeito ao mano a mano, portanto, peças sujeitas aos diferentes suores, depósito de poeiras, gorduras, bolores, potencial depósito de bactérias, enfim… aconselha-se a lavar as mãos depois de o manusear, como prevenção.

Por lapso tecnológic­o, que ocorrem com frequência, apesar dos pesares, o bom mesmo é tê-lo connosco na mão, no bolso ou na carteira, para o devido sentimento de posse. Bancos são armazéns (!?), locais seguros; sem dúvidas, mas quando o “sistema” falha, “a felicidade do pobre dura pouco.”

Hoje, nos mercados espalhados por Luanda, as falhas de “sistema” e as enchentes nos bancos, fizeram emergir os "TPA alternativ­os, de serviço”, com utentes que cobram percentage­ns adicionais que rondam o roubo, numa engenharia financeira que fere a legalidade. Como proteger o nosso bom kumbú, para que dure mais tempo?

Essa é a pergunta que fica.

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