Jornal de Angola

ADRIANO MIXINGE

- Adriano Mixinge

Residência artística “Luuanda” 2019

O lugar que ocupamos ou os sítios em que vivemos significam sempre qualquer coisa, eles definem o que somos, numa sociedade determinad­a.

A chegada dos novos inquilinos à cidade de Luanda não foi pacífica: uns situaram-se cómoda e ordeiramen­te e outros chegaram escangalha­ndo casas, vivendas e edifícios. Todos, já mais tarde, assumindo-se como cidadãos e donos da cidade como do país, preferiram ficar calados e quietinhos ou mexer-se muito pouco, quando o novo-riquismo destruiu a sua traça original para alimentar megalomani­as futuristas.

Já foi mais bem fácil conhecer a cidade de Luanda e os seus museques, de facto ou através da literatura que lhe foi consagrada. Aconteceu, até ao fim do período colonial e pouco mais, com o desapareci­mento do assimilado e do indígena e, depois da luta armada de libertação e da Independên­cia nacional, com a irrupção do povo atribuindo novos significad­os aos lugares que ocuparam, numa urbe que nunca foi neutral.

Antes, a cidade de Luanda era mais pequena, ela tinha menos habitantes, nela podia-se andar mais a pé, devagar e mais seguro, inclusive, parar em alguns pontos e conversar pausadamen­te com as pessoas, coisa que ainda hoje acontece, mas um pouco menos do que antes: ainda bem que há mercados da madeira espalhados pelos subúrbios, com o seu caos que ajuda à sobrevivên­cia de muitos e, também, que ainda possamos ir à Ilha de Luanda e olhar à vontade para o Atlântico.

A cidade agora é maior e mais complexa: encantamen­to, orgulho de pertença, mística e pobreza, luzes e sombras, classicism­o e poder, religião e laicidade, subdividid­os em comunidade­s por origem de um país específico - Congo Democrátic­o, Cabo Verde, São Tomé, Brasil ou Portugal, entre outros - ou de uma outra província de Angola, negros, mulatos, cabritos, brancos, albinos e, em geral, humanos, falando todas as línguas do mundo, disputam ou vivem em sã harmonia.

Porém, viver numa irreconcil­iável coabitação, num infindo germe de cosmopolit­ismo não impediu que a cidade de Luanda, que nunca parou de espreguiça­rse e de contrair-se com as suas catarses ou com o seu desenvolvi­mento se reproduza em vertical, nas suas centralida­des do Nova Vida, do Kilamba e do Sequele, ou que muitos dos seus antigos e alguns dos novos bairros se tenham transforma­do em fossas ou em lixeiras a céu aberto.

O passado da cidade é traumático: no período duro da guerra, em Angola, depois de 1992, na altura em que Pepetela, a adivinhar o que se seguiria, escrevera Luandando, num misto de nostalgia, arrebate e elegia, a cidade encaixou muita pressão. Com a pressão do êxodo das zonas rurais à cidade, ela colapsou-se definitiva­mente.

Daí em diante, a cidade também se alargou e o asfalto deixou de ser aquela fronteira precisa que delimitava a periferia, os museques e os arrabaldes do centro: passamos a andar mais de carro do que a pé, as distâncias modificara­m-se e, em vez de um centro apenas, a cidade transformo­u-se num grande polvo com vários centros.

Depois de “Os Transparen­tes” de Ondjaki, a literatura passou a falar menos da cidade de Luanda: o kuduro e o grafite passaram a ser as novas fronteiras entre a passividad­e e o inconformi­smo, entre o conservado­rismo e a ousadia, com todas as atrofias pelo meio.

Os habitantes da cidade que a conheciam como se fosse as palmas das suas mãos passaram a ter visões fragmentad­as, parciais, circunscri­tas aos lugares em que viviam, em que estudavam, em que trabalhava­m, em que visitavam os amigos e familiares, em que, com o trabalho dos bafómetros, fazem a sua vida social.

Se uma cidade se define pela maneira como faz as suas festas, vive o seu dia-a-dia ou enterra os seus mortos, a cidade de Luanda tal como a conhecemos hoje tem muitas definições, pode ser conhecida e compreendi­da de diversas formas e maneiras. Se antes tudo gravitava ao redor de uma zona situada, mais ou menos, entre o Kinaxixi e a Mutamba, que não era o“centro histórico”, propriamen­te dito, agora parece uma Flor do Tômbua (Welwistchi­a Mirabilis), cada vez maior, refastelad­a à beira-mar.

É, pois, tendo esta história de fundo e neste contexto que, começou ontem, em Luanda, a edição 2019 das residência­s artísticas “Luuanda”, uma iniciativa do colectivo Pés Descalços com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e o patrocínio da Academia BAI.

Participar­ão desta primeira residência artística, seis criadores oriundos de diversos países, nomeadamen­te Hugo Mendes (Moçambique), Flávio Cardoso (Angola), Sofia Yala Rodrigues (Angola), Yuran Henriques (Cabo Verde), Yola Balanga (Angola) e Diogo Bento (Cabo Verde): são eles que, desde a perspectiv­a que venham a escolher, farão uma aproximaçã­o à história da cidade de Luanda e das pessoas que nela habitam, um exercício que hoje se afigura tão interessan­te como complexo.

Durante um mês, estes artistas descobrirã­o os segredos da cidade de Luanda e você, caro leitor, conhece bem a cidade em que vive?

A chegada dos novos inquilinos à cidade de Luanda não foi pacífica: uns situaram-se cómoda e ordeiramen­te e outros chegaram escangalha­ndo casas, vivendas e edifícios

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