Uma viagem inesquecível à vila de Dirico
A visita do Príncipe Harry a Angola, nos dias 26 e 28 de Setembro, foi o mote para a viagem ao Cuando Cubango. Só no local, é possível compreender as dificuldades de uma província praticamente desabitada, cortada por rios e memórias de guerras e zonas de
Dia 1: Não gosto de carne de caça Mal levei a carne seca de caça à boca e logo senti o odor às peles do animal. Qual molho, qual quê. Não sou capaz de engolir a primeira garfada e, rapidamente, desisto de matar a fome com aquele conduto. Nem o funji misto conseguiu convencer-me - só a couve agradou e não dá para alimentar o corpo, mesmo pequeno, apenas à base de folhas refogadas.
Como somos quatro pessoas na mesa daquela tia, na única rua asfaltada do Cuito Cuanavale, província do Cuando Cubango, atiro o prato para outro colega. Ele não recusa. Ao lado, na mesma rua, estão outras senhoras a vender refeições e prefiro lutar com o clássico arroz com feijão. E a couve sim, sempre a couve refogada, para dar vitamina e animar um bocado as entranhas.
Agora, o relógio aponta para as 12 horas. Eu e o fotógrafo Dombele Bernardo estamos oficialmente a caminho do município do Dirico. A comitiva fica completa com os companheiros da Angop, TPA e do Centro de Imprensa Aníbal de Melo. Ao grupo de jornalistas, junta-se também um representante do Ministério da Administração do Território e Reforma do Estado (MATRE).
Saímos de Luanda, num avião repleto de militares e agentes da segurança, por volta das 7 horas. Só uma hora e meia depois aterrámos no Cuito Cuanavale, cenário fantástico de transições políticas e retóricas épicas, a maioria ainda por desvendar.
A viagem começa normalmente mas o Príncipe Harry, quinto na linha de sucessão da Rainha Isabel II de Inglaterra (sua avó), apenas chega ao país daqui a dois dias, na quinta-feira, 26 de Setembro. Não sabemos o que nos espera lá à frente mas é engraçado concluir, logo nas primeiras horas, que a nossa mala repleta de perfumes, casacos sociais slim fit e loções corporais mais ou menos ricas - é um equívoco. Um completo equívoco.
Depois do almoço, tipo já não vamos comer mais, regressámos ao pequeno aeroporto do Cuito Cuanavale onde aguardámos algumas horas pelo pequeno Twin Otter DHC6 de 17 lugares, da empresa de aeronáutica Sequeira João Lourenço (SJL). São 15 e 30 quando subimos as escadas para dentro do avião, que agilizou uma autêntica ponte aérea entre o Cuito Cuanavale e o Dirico.
Não há tranquilidade que resista mas aprecio a solidariedade-não-anunciada entre os passageiros e tripulantes. Não há classe social, profissão, cor da pele ou condição económica que resista a uma ideia maior: todos estamos unidos no forte desejo de não nos espatifarmos lá em baixo. Crescem os sorrisos transpirados e os olhares de cumplicidade no sofrimento.
Depois de muitas passadas de kizomba, por entre aquele céu azul, conseguimos aterrar na pista de terra e areia do Dirico. São 17 horas de terçafeira, 24 de Setembro. Já a luz do sol caminha para o seu esconderijo preferido. Naqueles lados, começa a amanhecer por volta das 4 e 30 e fica tudo escuro às 18 horas, situação que relança o debate sobre os fusos horários no país.
Começa agora a batalha por um colchão, uma tenda e uma acomodação. Esperamos duas horas por uma resposta ao lado da pista.
No Dirico, não há hotel, nem pensão, nem restaurante, apenas duas cantinas que aceitam o rand e vendem cartões de telecomunicações da Namíbia, entre outros produtos bastante acima do preço de referência. Estamos junto à fronteira sudeste e a poucos quilómetros dos vizinhos de baixo. Os sinais de que estamos em Angola só existem na unidade policial e na administração municipal.
Às 19 horas, despejamnos no acampamento profissional da organização inglesa Halo Trust, que desenvolve projectos de desminagem no município do Dirico.
Somos bem recebidos mais uma vez a solidariedade humana no seu melhor. Porque naquele contexto estamos todos no mesmo barco. Não temos onde dormir, a noite chegou sem pedir licença e rapidamente nos dizem que, enfim, lamentamos isso tudo mas, meus irmãos, a solução está no chão do jango construído há poucos dias com madeiras locais. Assim mesmo.
Quando recebemos os colchões e as mantas enviadas pelo tenente-coronel Cazengo - um dos responsáveis da Casa de Segurança do Presidente da República, que garantiu a criação de condições para receber os visitantes - fazemos a nossa esteira.
Depois do jogo do Barcelona (o gerador do acampamento funciona das 18 às 22h, na vila algumas poucas habitações recebem energia da Namíbia), avisam que é melhor não circular de chinelos àquela hora. Um frio desgraçado e silencioso preenche o nosso sono e entranhase nos ossos durante a noite. Os sonhos são marcados por cobras e animais peludos.