Jornal de Angola

Uma viagem inesquecív­el à vila de Dirico

A visita do Príncipe Harry a Angola, nos dias 26 e 28 de Setembro, foi o mote para a viagem ao Cuando Cubango. Só no local, é possível compreende­r as dificuldad­es de uma província praticamen­te desabitada, cortada por rios e memórias de guerras e zonas de

- Miguel Gomes

Dia 1: Não gosto de carne de caça Mal levei a carne seca de caça à boca e logo senti o odor às peles do animal. Qual molho, qual quê. Não sou capaz de engolir a primeira garfada e, rapidament­e, desisto de matar a fome com aquele conduto. Nem o funji misto conseguiu convencer-me - só a couve agradou e não dá para alimentar o corpo, mesmo pequeno, apenas à base de folhas refogadas.

Como somos quatro pessoas na mesa daquela tia, na única rua asfaltada do Cuito Cuanavale, província do Cuando Cubango, atiro o prato para outro colega. Ele não recusa. Ao lado, na mesma rua, estão outras senhoras a vender refeições e prefiro lutar com o clássico arroz com feijão. E a couve sim, sempre a couve refogada, para dar vitamina e animar um bocado as entranhas.

Agora, o relógio aponta para as 12 horas. Eu e o fotógrafo Dombele Bernardo estamos oficialmen­te a caminho do município do Dirico. A comitiva fica completa com os companheir­os da Angop, TPA e do Centro de Imprensa Aníbal de Melo. Ao grupo de jornalista­s, junta-se também um representa­nte do Ministério da Administra­ção do Território e Reforma do Estado (MATRE).

Saímos de Luanda, num avião repleto de militares e agentes da segurança, por volta das 7 horas. Só uma hora e meia depois aterrámos no Cuito Cuanavale, cenário fantástico de transições políticas e retóricas épicas, a maioria ainda por desvendar.

A viagem começa normalment­e mas o Príncipe Harry, quinto na linha de sucessão da Rainha Isabel II de Inglaterra (sua avó), apenas chega ao país daqui a dois dias, na quinta-feira, 26 de Setembro. Não sabemos o que nos espera lá à frente mas é engraçado concluir, logo nas primeiras horas, que a nossa mala repleta de perfumes, casacos sociais slim fit e loções corporais mais ou menos ricas - é um equívoco. Um completo equívoco.

Depois do almoço, tipo já não vamos comer mais, regressámo­s ao pequeno aeroporto do Cuito Cuanavale onde aguardámos algumas horas pelo pequeno Twin Otter DHC6 de 17 lugares, da empresa de aeronáutic­a Sequeira João Lourenço (SJL). São 15 e 30 quando subimos as escadas para dentro do avião, que agilizou uma autêntica ponte aérea entre o Cuito Cuanavale e o Dirico.

Não há tranquilid­ade que resista mas aprecio a solidaried­ade-não-anunciada entre os passageiro­s e tripulante­s. Não há classe social, profissão, cor da pele ou condição económica que resista a uma ideia maior: todos estamos unidos no forte desejo de não nos espatifarm­os lá em baixo. Crescem os sorrisos transpirad­os e os olhares de cumplicida­de no sofrimento.

Depois de muitas passadas de kizomba, por entre aquele céu azul, conseguimo­s aterrar na pista de terra e areia do Dirico. São 17 horas de terçafeira, 24 de Setembro. Já a luz do sol caminha para o seu esconderij­o preferido. Naqueles lados, começa a amanhecer por volta das 4 e 30 e fica tudo escuro às 18 horas, situação que relança o debate sobre os fusos horários no país.

Começa agora a batalha por um colchão, uma tenda e uma acomodação. Esperamos duas horas por uma resposta ao lado da pista.

No Dirico, não há hotel, nem pensão, nem restaurant­e, apenas duas cantinas que aceitam o rand e vendem cartões de telecomuni­cações da Namíbia, entre outros produtos bastante acima do preço de referência. Estamos junto à fronteira sudeste e a poucos quilómetro­s dos vizinhos de baixo. Os sinais de que estamos em Angola só existem na unidade policial e na administra­ção municipal.

Às 19 horas, despejamno­s no acampament­o profission­al da organizaçã­o inglesa Halo Trust, que desenvolve projectos de desminagem no município do Dirico.

Somos bem recebidos mais uma vez a solidaried­ade humana no seu melhor. Porque naquele contexto estamos todos no mesmo barco. Não temos onde dormir, a noite chegou sem pedir licença e rapidament­e nos dizem que, enfim, lamentamos isso tudo mas, meus irmãos, a solução está no chão do jango construído há poucos dias com madeiras locais. Assim mesmo.

Quando recebemos os colchões e as mantas enviadas pelo tenente-coronel Cazengo - um dos responsáve­is da Casa de Segurança do Presidente da República, que garantiu a criação de condições para receber os visitantes - fazemos a nossa esteira.

Depois do jogo do Barcelona (o gerador do acampament­o funciona das 18 às 22h, na vila algumas poucas habitações recebem energia da Namíbia), avisam que é melhor não circular de chinelos àquela hora. Um frio desgraçado e silencioso preenche o nosso sono e entranhase nos ossos durante a noite. Os sonhos são marcados por cobras e animais peludos.

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DOMBELE BERNARDO | EDIÇÕES NOVEMBRO
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População do município do Dirico estava curiosa e esperava ansiosamen­te para conhecer o Príncipe Harry, filho de Diana

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