O juízo do tempo
O país caminha para a materialização dos diversos projectos sufragados nas urnas em 2017 e que contemplam um conjunto de propostas reformistas para dar maior dignidade à vida dos cidadãos, contrariando um sistema que vinha de anos e anos e que teve os seus momentos altos e de glória mas que, também, sobretudo nos últimos tempos, deixou um leque de vícios e anormalidades que passou a ser considerado normal.
Ninguém esperava que a tarefa fosse fácil. Havia, desde o início, a ideia de que ou se operavam as reformas ou a situação seria insustentável. Havíamos batido no fundo e como relatava o escritor, nas suas cartas à prima, pior do que estávamos já não podíamos ficar.
E esse pior não se resume, apenas, às dificuldades que já então se viviam em quase todos os domínios que se tornaram num circulo vicioso de tão recalcitrantes e transversais. Nos últimos anos, a pretexto da tal acumulação primitiva de capital, as assimetrias aumentaram e criou-se a ideia ilusória de um país em crescimento, só que um crescimento sustentado apenas na subida vertiginosa do preço do barril de petróleo nos mercados internacionais. A tão propalada diversificação económica foi atirada para as calendas gregas e no seu lugar instalou-se o princípio do desenrascanço, do salve-se como puder que minou as instituições públicas e toda a sociedade, abrindo lugar a famosa gasosa que conhecia sabores e tons diferentes consoante o nível do consumidor.
Era a institucionalização da impunidade para aqueles que desviavam fundos públicos em proveito próprio, que se acapararam de todas e principais riquezas do país e foram exportando, num movimento criminoso e anti-patriótico. A corrupção não podia encontrar campo mais fértil para se estender, sabendo-se, de antemão, que a justiça era para inglês ver e estava mais preocupada com os pilha-galinhas do que com aqueles que saqueavam conscientemente o erário, deixando a meio, ou sem iniciar, milhares de projectos que visavam dar melhor qualidade de vida às pessoas. O crime de colarinho branco parecia que não estava contemplado no Código Penal, tal a forma descarada como actuava.
Hoje, quando se procura inverter este quadro, assiste-se a fortes resistências que são incentivadas exactamente por aqueles que pensaram um dia que tinham procuração para serem os novos donos disto tudo. São pessoas inconformadas com as mudanças, com as reformas, porque, afinal, elas estão a mexer com os seus interesses e por isso há que arregimentar simpatias e experimentar todas as formas de descredibilizar a cruzada contra a corrupção e a impunidade e os seus principais impulsionadores.
Empolam as dificuldades que eles próprios criaram, como se elas tivessem surgido há dois anos, ignorando que o país ainda não conseguiu erguer-se da crise económica mundial que vem desde 2014. A crise era para os outros porque a minoria predadora passava ao lado de tudo e de todos e hoje é vê-la “tão preocupada” com o sofrimento da maioria, em áudios, vídeos e posts nas redes sociais, até chegarem ao extremo de procurar medir a sua capacidade mobilizadora, explorando as fragilidades por que passam hoje as famílias, com propostas de greves silenciosas, como a que convocaram, sem êxito, na última sexta-feira.
Nunca, como hoje, o respeito pelos direitos, liberdades e garantias foi tão observado e, por isso, ninguém se pode assustar com manifestações, greves e outras formas de protesto dentro da ordem. Por isso, o “não saio de casa” era mais do que normal, não se soubessem as reais intenções que estavam subjacentes a esse prometido protesto e que não se fica, apenas, pelo dar força e importância aos anónimos e alguns que conseguiram dar o rosto, apelando à adesão ao protesto.
Sendo parte de um plano muito mais vasto de desestabilização da governação, o protesto era como que um ensaio para a manifestação que está anunciada para terça-feira, frente à Assembleia Nacional, por ocasião do discurso sobre o Estado da Nação.
A esta hora, os seus promotores já deverão estar a repensar os métodos a adoptar, ante o fracasso do ensaio do “não saio de casa”, procurando formas de protesto que violem a lei (manifestações em frente aos órgãos de soberania), para provocarem desacatos com a Polícia e terem os seus minutos de fama e solidariedade nacional e internacional, como se noutras paragens, ditas civilizadamente democráticas, as autoridades não carregassem sem apelo, nem agravo, contra os manifestantes, seja em Hong Kong, seja nas principais cidades europeias com o tal movimento “extinction rebellion”.
As dificuldades por que passamos hoje vêm de trás, onde a inflação ultrapassava os 40 por cento e os salários da Função Pública conheciam atrasos consideráveis. Por isso, a necessidade do programa de estabilidade macro-económica para reequilibrar os principais indicadores que são indispensáveis para um crescimento sustentável. E isso leva o seu tempo, embora alguns resultados sejam já uma realidade, a começar exactamente pela redução da inflação ou a anulação dos défices das contas internas e externas, com sinais evidentes de um regresso próximo ao crescimento, como disse na despedida o ex-ministro das Finanças.
Ninguém esconde que o desemprego e a perda do poder de compra constituem dos principais problemas da actualidade que exigem medidas urgentes. Para isso é necessário melhorar o ambiente de negócios, captar investimento privado que vai permitir fomentar o emprego, da mesma maneira que o programa de empregabilidade lançado pelo Governo que tem no horizonte a criação de cerca de 250 mil empregos.
O Estado não se intimida perante a dolorosa herança e, muito menos, com as acções de desestabilização pelo que, paulatinamente, vai dando resposta aos problemas, com a consciência de que as expectativas superam, de longe, a capacidade de realização.