Jornal de Angola

No Cuito o comboio apanha-se no Cunje

O comboio chegou ao Cunje em 1929, depois de nascer no Lobito e passar por Benguela, Cubal e Huambo

- Miguel Gomes l Cuito

Voca Franco está firme na bicha para comprar o bilhete que o vai levar ao Luena, província do Moxico. Poucos minutos antes um comboio com várias carruagens de carga e passageiro­s amontoados na terceira classe tinha zarpado rumo a outras bandas. Estamos na estação do Cuito, que na verdade é na comuna do Cunje.

“Viajo de comboio trimestral­mente. Vou a Benguela fazer consultas e visitar alguns familiares. Desta vez fiquei lá duas semanas", disse Voca Franco, professor do ensino primário, 54 anos.

Enquanto a família mais chegada vive no Luena, Franco desenvolve a sua profissão na cidade de Saurimo, província da Lunda Sul. Há aqui uma triangulaç­ão da vida pessoal e profission­al que junta Benguela, Moxico e Lunda Sul. E o Caminho de Ferro de Benguela (CFB) tem um papel a desempenha­r.

A comuna do Cunje está a cerca de 5 quilómetro­s da cidade do Cuito. É uma zona que vive do movimento de pessoas à volta do CFB e de alguma pequena agricultur­a.

Voca Franco conseguiu comprar o seu bilhete para o Luena. Mas a viagem é só no dia a seguir (hoje, quartafeir­a). Não perguntamo­s mas é provável que pernoite nas imediações da estação, onde terá de comprar algo para comer e beber. Algumas dezenas de pessoas tentam imitar Voca Franco, procuram o seu destino e adquirem os respectivo­s bilhetes.

Tiago Tchikemana tem barba e afirma já ser pai antes de assumir os seus 33 anos de idade. Não é passageiro mas diz ser natural do Cunje onde aguentou “muita quentura” na vida. A alegoria não diz respeito a questões climáticas. É uma forma de lembrar a guerra civil, memória algo distante, por estes dias, mas que está presente nas vistas e no coração de muitos. A tragédia é sempre difícil de olvidar.

“As pessoas que necessitam de pernoitar na estação não têm boas condições. Quem tem algum dinheiro disponível acaba por se atirar nas casas de processo. Quem não tem esta possibilid­ade dorme mesmo na rua. Dentro da estação ninguém fica", contou o carregador, que lamenta a falta de condições.

Tchikemana ajuda a levar a mercadoria dos passageiro­s para os vagões de carga. Diz que por dia ganha entre 1000 a 1500 kwanzas.

Surpresas e desilusões

Por trás de Tiago Tchikemana, a pouco mais de cinco metros de distância, estão duas senhoras mais-velhas. Uma está a tricotar, em silêncio, ao mesmo tempo que aprecia os rostos e os movimentos de quem passa no interior da Estação do Cuito, que na verdade é no Cunje. Ao seu lado está Helena Jamba, provenient­e de Luanda, onde apanhou o autocarro para o Cuito. Daqui segue então para o Luena.

“Estou a ler um livro que fala do povo de Israel”, explica, antes de contar um pouco da história que utiliza para alimentar a sua relação com o divino.

Helena Jamba tem 54 anos, sete filhos e o marido é falecido. Para além do livro e de uma bíblia viaja com sacos e água para beber. Vive em Luanda há muitos anos apesar de ser natural do Luena.

“Prefiro vir de carro até ao Cuito e depois apanhar o comboio para o Luena”, disse Helena Jamba. Rapidament­e explica porquê. “De avião está a custar 45 mil kwanzas. Ida e volta chega aos 90 mil - eu nunca vi este dinheiro”, contou.

É uma hipérbole que serve para frisar que viajar de avião deixou, nos últimos anos, de estar ao alcance de qualquer cidadão. Mais uma razão para investir noutras alternativ­as, como o comboio e o autocarro. A província do Bié, que está no centro geodésico do país, tem condições para transforma­r-se numa plataforma logística.

Helena Jamba demorou um pouco a aceitar a entrevista. Depois explicou porquê. “Ninguém sabe que estou a viajar. É uma surpresa. Desde 1997 que não vou ao Luena. Tenho receio que as fotografia­s sejam publicadas e que toda a gente me veja!”.

Os passageiro­s de 2019 do CFB provavelme­nte desconhece­m que a contrução da linha férrea foi realizada com objectivos muito específico­s - que não incluíam o transporte de nativos ou a promoção do comércio e da interligaç­ão do país. A construção do CFB foi uma promoção britânica - que Portugal aceitou por razões económicas, políticas e militares - para facilitar e tornar mais barata a exportação do cobre zambiano.

Esta iniciativa estava conectada com o projecto ferroviári­o inglês que ligou a Cidade do Cabo (África do Sul) ao Cairo (Egipto) e que tinha uma importante actividade na província do Katanga, antigo Congo Belga e actual República Democrátic­a do Congo.

Era o colonialis­mo a todoo-vapor na exploração dos recursos naturais e da mãode-obra forçada.

O comboio chegou ao Cunje em 1929, depois de nascer no Lobito e passar por Benguela, Cubal e Huambo.

Tudo isto parece ser desconheci­do para Manuel Akuku, 52 anos, que veio de Luanda mas vive no Cuito. Utiliza o comboio para chegar ao Luau (Moxico). É comerciant­e de materiais de construção e faz esta viagem uma vez por mês.

Sobre a confusão e falta de condições que reina na terceira-classe (quase todos os comboios têm três classes disponívei­s para os passageiro­s), Akuku entra em modo desesperan­ça e auto-crítica exagerada, como se não houvesse solução para os problemas.

“É África”, atirou, ao mesmo tempo que encolhe os ombros. "É assim em todos os países: África do Sul, RDC, Moçambique. Estamos a melhorar mas ainda não temos um comboio a passar de 10 em 10 minutos”, disse, conformado.

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JOSÉ COLA | EDIÇÕES NOVEMBRO Helena diz que o comboio é barato
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JOSÉ COLA | EDIÇÕES NOVEMBRO Tiago ajuda a levar a mercadoria
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JOSÉ COLA | EDIÇÕES NOVEMBRO Bilheteira apinhada de gente
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JOSÉ COLA | EDIÇÕES NOVEMBRO Voca Franco viaja de comboio

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