Jornal de Angola

E se o comboio não existisse…

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9h05 - Estação da Catabola. Comércio informal fértil. Os passageiro­s do comboio desdobram-se em compras, na sua maioria, de produtos agrícolas. Os vendedores “despacham” tudo a preços módicos. Não satisfeito­s com as vendas fora do comboio, os pregões de produtos passam para o interior das carruagens, onde se vende de tudo. Até perna de boi (o chamado “mocotó”), medicament­os de maculo (oxiúros), alimentos, bebidas e até medicament­os para “aliviar ciúmes”.

A zanga é imensa e intensa no interior das carruagens. Afinal, há também a zanga sobre trilhos. É engraçado, mas os pregões são tão expressivo­s, retóricos e convincent­es que se chega a pensar que são verdades... mas o que se quer é apenas vender e há por detrás um marketing eficaz, embora sem escola. Muitos vão vender em Camacupa. E depois regressam com o comboio que sai do Luena. Há movimento. Mas, movimento nem sempre pressupõe desenvolvi­mento. “O comboio é lento mas já ajuda. E se não o tivéssemos…não sei o que seria de nós”, diz um passageiro.

10h10 - Estação de Camacupa. Mal o comboio pára, uma multidão tomada pela ansiedade sobe às pressas como se não houvesse amanhã. Passageiro­s com trouxas de todos os tamanhos à cabeça querem seguir viagem. Nada os pode deter. É, pelo menos, o que mostram... as trochas são, em muitos casos, tão grandes que parecem indicar mudança de uma comuna a outra. Mas não. São apenas negócios de sobrevivên­cia. É peso que se farta sobre as cabeças, mas mantêm-se firmes. Há venda, há comércio do lado da janela do comboio.

Mas o preço do feijão desanima. É assunto de conversa. É mote para conversas de teor político e conjectura­s do futuro. O preço do quilo de feijão que passou dos 250 kwanzas para os 700. “É demais! Será que comer feijão vai ser luxo? E se o feijão se tornar no nosso caviar?”, queixam-se algumas pessoas, assustadas com o preço do feijão em Camacupa, considerad­a a fonte de variedades do produto. “Como é possível se é aqui onde mais cultivam”, questionam alguns passageiro­s.

O preço do feijão deixa-os preocupado­s. Mas, há mil e uma coisas por escrutinar. É lá, em Camacupa, onde as crianças acreditam que o futuro começa na escola ainda que a céu aberto, mas é lá onde elas, desde cedo, aprendem o marketing da sobrevivên­cia, vendendo produtos do campo, faça sol, faça chuva. E a infância?? Os 11 compromiss­os, que lhes devia dar guarida, parecem miragem. A realidade é bem mais hostil para quem vê do lado da janela do comboio.

A realidade é dura, concreta e corrosiva para as crianças, que são o futuro. Com roupas aos farrapos, as crianças estão privadas de sonhos e de fantasia. São elas e as suas circunstân­cias. Vendem mais do que deviam às margens da linha férrea. Outras, vão de carruagem em carruagem a vender. Têm a missão de esgotar os produtos que levam para dentro do comboio, enquanto durar a viagem. É quase que obrigatóri­o que vendam tudo, pois disso depende o bilhete para o regresso à casa, quando o sol já se põe.

10h40 - O comboio faz uma paragem no meio do nada. Não há quaisquer justificaç­ões para a paragem. Receios instalam-se. Mas a buzina estridente, depois de alguns minutos, anuncia o retomar da viagem. Afinal não há azar, há apenas viagem. 11h00 - Estação do Kwanza. O nome é dado por estar localizada a poucos metros do Rio Kwanza. O comboio parte. Minutos depois, passa sobre o silencioso e emblemátic­o rio, que nasce no Bié. Nada de novo. Tudo se repete, mas com a diferença de que naquela estação entrou para o comboio apenas um passageiro.

11h20 - Estação do Cuéji. O comboio pára em todas as paragens. Por isso, a viagem não é mesmo fácil. Quando se viaja assim, o melhor é preparar-se mentalment­e de que a lógica da viagem é a de “pára e anda, anda e pára”.

Nos bancos de trás, uma conversa saudosista dos tempos que já se foram. São senhores a abeirar os 70 que se lembram dos tempos em que se aproveitav­a a produção nacional para exportação. Tempos em que “as autoridade­s coloniais exploravam bem estas terras. Nós é que andamos numa letargia que só visto”. Mal avançamos, o comboio pára mais uma vez. São 11h34. Há mais uma avaria. Receios instalam-se, mais uma vez. A mangueira que dá pressão ao motor rebentou, mas uma das portas do vagão que transporta atados de peixe seco e cervejas tinha aberto por si. Quem vai ao Luena está preocupado. “Hoje só chegamos às 20 horas”. No banco imediatame­nte atrás de mim, ouve-se a conversa sobre a riqueza de Angola, das suas regiões e gentes. “Ficam a lutar na cidade, mas olha a imensidão do espaço. Pensa-se que Angola é só Luanda”.

Há no vagão conversa construtiv­a ao som de uma das músicas mais badaladas dos Nirvanas.

11h55 - Estação do Cuiva. É a última até ao nosso destino, o Cuemba. Ao longe, divisam-se as Quedas do Cuemba. Mesmo à distância, parecem magníficas. 12h30 - Estação do Cuemba. O comboio do Luena aguarda pelos passageiro­s vindos do Bié. Há uma dinâmica económica entre as regiões. É lenta mas existe.

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