Faleceu a Mãe Valeriana Sapi Mbandua
Tive a sorte na vida de ter várias mães. A Tia Valeriana Sapi Tanganyika Mbandua, nascida no dia 15 de Agosto de 1916 e que faleceu no dia 17 de Outubro de 2019 com 103 anos, foi uma das minhas mães. Em Fevereiro de 1976, quando a UNITA recuou do Huambo, nós, com laços muito fortes à liderança do partido, tivemos que abandonar o Huambo e outras cidades. Fomos para as matas do Cuando Cubango e, eventualmente, acabamos como refugíados na Zâmbia.
De Fevereiro a Abril de 1976, andamos por meses pelas matas do leste até chegarmos à Zâmbia. Com dez anos, vi muitas pessoas a sofrerem, a passarem fome, completamente traumatizadas pela má situação em que nos encontrávamos; vi pessoas a morrerem. Nisto tudo, havia sempre a Tia Valeriana Mbandua, que acalmava não só a mim mas a várias outras pessoas, completamente desnorteadas pela guerra.
Na Zâmbia, estudei num internato em Mwinilunga, no nordeste do país. Durante as férias, eu ia para o campo de refugiados de Meheba, onde o casal Mbandua tinha sido chave na construção de clínicas e igrejas. Fui um adolescente muito curioso — não parava de fazer perguntas. A Tia Valeriana estava sempre pronta a responder-me. As suas respostas transformavam-se sempre em conselhos, cuja validade só passei a apreciar depois de ter viajado por várias partes do mundo.
Saí da Zâmbia em 1983 e fui para o Reino Unido. Em 1990, o casal Mbandua instalou-se nos Estados Unidos. A Tia Valeriana estava no Nordeste — em Portland; eu estava na Florida. Sempre tivemos conversas telefónicas bastante longas. A Tia regressou a Angola em 2005 e a sua casa no Huambo estava permanentemente cheia de parentes e amigos, que sempre a vinham visitar.
Eu também comecei a visitar Angola com regularidade e conversava bastante com a Tia Valeriana. Eu fazia questão de saber quase tudo sobre a sua longa e interessantíssima vida. Valeriana Sapi nasceu na aldeia de Saviye, município de Chiumbo. A aldeia fica ao lado de um rio com gigantescas pedras chamado Alleya. A Tia Valeriana é prima do meu pai, Tavares Hungulu Jamba, que vem da aldeia de Manico. Muito cedo na vida ela foi levada para a Missão do Dondi. Tendo demonstrado uma predisposição para trabalhar com crianças, ela passou a tratar de órfãos enquanto obtinha uma formação em enfermagem. Valeriana Sapi participou vivamente em várias iniciativas ligadas a missão dos missionários de espalhar o Evangelho entre as populações.
Em 1947, contrai matrimónio com Jeremias Mbandua numa cerimónia dirigida pelo Reverendo Jessé Chiula Chipenda, primeiro Secretário-Geral da IECA Angolano, no Lobito. O Reverendo Jessé
Chiula Chipenda é pai do nacionalista Daniel Chipenda. O Reverendo Jessé Chipenda, que faleceu no campo prisional de São Nicolau, era também primo da Tia Valeriana. Soube que na nossa área do Planalto membros de famílias reais casavamse muito entre si — para criar e manter, claro, alianças estratégicas.
O casal Mbandua teve sempre, entre várias, duas preocupações principais: ajudar a sustentação da saúde pública e propagação do Evangelho. Nos anos cinquenta do século passado, principalmente por causa das actividades do Caminho de Ferro de Benguela (CFB), o Huambo começou a transformar-se num centro urbano bastante cosmopolita. Havia uma necessidade de criar igrejas da IECA. Foi assim que o casal Mbandua passa a residir no bairro Bom Pastor e ajuda a instalar a IECA no mesmo bairro. A família também ajudou na fundação de uma clínica na Calima, onde Valeriana Sapi trabalhou como enfermeira e parteira.
Nos anos 1950 e 1960, o casal Mbandua não é indiferente às ondas de propagação do nacionalismo africano. O casal Mbandua passa a ter fortes ligações com figuras evolvidas em iniciativas para por termo ao sistema colonial — especialmente com o Dr Jonas Savimbi, futuro líder da UNITA. Isto não escapa à atenção das autoridades coloniais, que desenvolvem várias maquinações para perseguir o casal; a família Mbandua é forçada a exilar-se no Congo Democrático para juntar os seus esforços à resistência anti-colonial. A família Mbandua instala-se na missão de Mwajinga, apoiada pela United Methodist Church, na região de Sandoa, na província de Katanga. A Tia Valeriana, em 1965, participou na reunião magna na Zâmbia que eventualmente resultou na formação da UNITA.
Em 1974, a família regressa a Angola depois do golpe de 25 de Abril em Portugal. Antes, a Tia Valeriana esteve, por algum tempo, na famosa base central da UNITA de Massivi. Sempre interroguei-me onde a Tia Valeriana tinha aprendido tanto sobre como sobreviver nas matas. A verdade é que, do seu canto, a Tia Valeriana sempre foi uma guerreira movida por um sentimento profundo de aversão a tudo que era injusto. A Tia Valeriana tinha crescido entre missionários canadianos e americanos, muitos deles chegaram a ser expulsos de Angola, porque acreditavam que o Cristianismo era incompatível com o sistema colonial.
A Tia Valeriana foi uma verdadeira biblioteca; ela tinha um conhecimento enciclopédico da resistência anti-colonial no Planalto Central, no Leste e no Congo Democrático, assim como da Igreja Evangélica Congregacional de Angola (IECA). Mesmo na sua idade avançada, ela nunca perdeu a lucidez. Perdemos, verdadeiramente, uma grande mãe.