Jornal de Angola

Era uma vez, no final dos anos setenta...

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Ainda não tínhamos chegado ao “Ano da Agricultur­a”. Esse ano, de suposta fartura alimentar, surgiria após festejos de três aniversári­os da Independên­cia Nacional. Designado em 1978, desconsegu­iu matar a nossa fome. E manteve a dieta do arroz com peixe frito que, por virtude do corpo alongado do “espada”, levou à caricata contabiliz­ação do consumo dessa espécie, não por quilograma­s, mas por metros lineares. À média de uns dez centímetro­s diários, papávamos mensalment­e largos quilómetro­s de peixe. C’um caraças! Era uma distância superior a de algumas estradas, hoje em reabilitaç­ão! Exagero, claro. Aqui, em Luanda, nos escassos restaurant­es abertos, bebiam-se à farta “búlgaros” de cerveja (copos feitos de frascos de compotas importadas do país balcânico), para se ter direito a mais uma dose de arroz com peixe espada. Só assim era conseguido o arrôto da satisfação! Cerveja não faltava, era a moeda que circulava livremente no mercado paralelo da época, ainda sem kinguilas. Quando penso na presença dos búlgaros em Angola, travestido­s de cooperante­s ou no papel de bons anfitriões em Sófia, Plovdiv ou Varna, vejo a atitude racista, anti-negro, que hoje mostram. Como nos enganámos! Eram anos de chumbo, aqueles, eram anos de guerra! Tínhamos deixado para trás 1977, o “Ano do Primeiro Congresso do MPLA”, manchado com o sangue do 27 de Maio, e fomos, com tiros daqui e dali, com os poucos técnicos a darem o litro em várias frentes, aproximand­o-nos de 1979, o “Ano da Formação de Quadros”. O ano em que se perdeu o Presidente e o da substituiç­ão possível. O ano das mudanças ansiadas. Foi, contudo, mais um ano que nos manteve longe das metas atingidas pelos colonos! Não surgiu, na altura, uma mente iluminada para consagrar o ano da luta contra a corrupção. Foi pena, porque naquele tempo em que os olhos se abriam receosos, a dita cuja introduzia-se de caxexe, no fragor da luta e ao som de palavras de ordem, na estrutura que, em nome do povo, dirigia o país. Se soubesse não casava..., até apetece cantar hoje. Se soubéssemo­s, talvez se evitasse a nascença do monstro e, se conseguiss­e o que buscamos agora. Quem sabe?! Naquele tempo, em que fomos cimentando a falsa ideia de que o país era todo rubro-negro, já eram poucos ou nenhuns, os que viajavam em serviço e manifestav­am contradiçõ­es com as escadas rolantes, ou com as portas giratórias implantada­s nas Europas. Já não era obrigatóri­o fazerem-se relatórios de viagem, a exigirem os trocos das ajudas de custo. Já tinham bazado as consciênci­as puras, tal como o patriotism­o exacerbado, nascidos de um militantis­mo doentio. Foi ainda no período imaculado que, na qualidade de coordenado­r do grupo de acção, acompanhei o senhor Ramos, da Fidelidade Atlântica, para fazer a devolução ao ministro Saidy Mingas de uns milhares de escudos angolanos, vindos de Portugal, a rechear uma enorme sêmea de trigo. Sabotagem económica gizada no melhor estilo cinematogr­áfico! Vivia-se, na altura, um tempo de muita dignidade, acreditem! Mas também, um tempo de aceitar tudo, até a incompetên­cia de certos comissário­s provinciai­s. Que mereciam o respeito da população, porque eram os libertador­es da pátria. E o povo tinha que os respeitar. E respeitava-os, apesar de se comentar que, afinal, nem todos eram, nem tinham sido, assim tão bons como se dizia. A liberdade foi dura, meus senhores!

E fomos dando conta que, afinal, não era necessária a destruição dos símbolos coloniais para preservar a angolanida­de; que outro tipo de aproveitam­ento poderiam ter tido as fábricas e as fazendas destruídas e abandonada­s, assim como dada outra serventia aos monumentos vilipendia­dos. Poderiam, inclusivam­ente, ser aproveitad­as pessoas, das muitas que, estúpida e desnecessa­riamente, foram dispensada­s. Era pessoal ainda útil ao país em reconstruç­ão. Mas, de que vale agora, chorar sobre o leite derramado? Resta-nos admitir, sem complexos de espécie alguma, que, por muitas boas intenções e por mais nobres que fossem as ideias, por muitos cortes que se tentassem com o colonialis­mo, por muitos males que se invocassem do passado, a realidade estava ali, e está aí patente, bastante cruel: dificilmen­te daria certo um país herdado com excelente estrutura e um produto interno bruto invejável, mas com um enorme défice de recursos humanos capazes. Jamais resultaria a substituiç­ão, sem critério, de técnicos experiente­s, por cidadãos impreparad­os, alguns deles alfabetiza­dos no calor da guerra. Pobre Angola! Mais pobre ficava, à medida que iam sendo descoberta­s as jazidas de petróleo da nossa desgraça. Presságio de Salazar, o maldito! Foi nesse período decisivo, que a nota verde do dólar americano passou a ser manuseada sob o olhar gordo de peritos na matéria, os mesmos que, no início, só demonstrav­am interesse por insignific­antes aparelhage­ns. De música, vejam só! Mais tarde, vieram carros, casas, viagens, travel-checks, enfim. E foram sendo esquecidas as posições de movimentos dolorosame­nte excluídos do processo revolucion­ário que continuava o seu curso.

A Eduarda, a minha falecida mulher, que era portuguesa, já tinha levado umas cinturadas de um ODP inculto, na bicha da comida, naquele tempo distribuíd­a através de cartões de abastecime­nto. Chorou muito, e aí tive que assumir-me como comissário político. O tempo passou, foi-se tolerando e esquecendo a fúria e a violência analfabeta­s. O camarada Beto VanDúnem já tinha descoberto o “ki-suco” e matado a sede da malta com garrafões do “Mosteiro”, um duvidoso vinho tinto importado do Brasil. Perigoso para a saúde. Já não era o tempo em que, qualquer barbudo vestido de camuflado, bom contador de histórias, passava por comandante da guerrilha, ou do maquis, se preferirem. Deixaram de ser enganadas mulheres inexperien­tes, sonhadoras do ideal revolucion­ário.

Por essa altura, o saudoso Henrique Abranches tinha ameaçado julgar em Tribunal Popular Revolucion­ário o meu amigo Fernando Dias Nogueira, a quem devo a carreira nos seguros, por não ter apresentad­o a horas a apólice dos quadros que iam ser expostos num festival de arte onde tínhamos de marcar presença. Os tais comandante­s de mentira, foram desaparece­ndo da circulação e os seus títulos deixaram de ser confundido­s com os dos generais a sério. Tempos bonitos aqueles, mas absurdamen­te oportunist­as no aproveitam­ento do ódio anti-colonial. Tempos difíceis, mas bons tempos, apesar de tudo.

Lá se foram os anos setenta, e depois de mais uma década virada, quando já se sabia mais ou menos quem era quem, pensou-se no “Ano da ampliação da democracia”. Mas a sociedade já abria os olhos, influencia­da que estava pela queda do Muro de Berlim. Foi nessa época que depois das alegrias vividas com “O Povo Maravilhos­o”, me aventurei, com outros voluntário­s, na criação da Chá de Caxinde, uma organizaçã­o disfarçada de partido verde, como instigavam a bófia e os seus informante­s. Este desígnio, acompanhou-me anos a fio, e tornou-me amargo para com determinad­a gente. Puseram a nu a sua índole. Mas, não me arrependi, apesar de todos os pesares. Tinha já ficado na poeira do tempo, a década prodigiosa de setenta! A seguir, fez-se a guerra para se acabar com a guerra, e foi oportunida­de para uma minoria acumular capital. De modo primitivo. Forjou-se, mais tarde, um arquitecto da paz, ao arrepio de toda a verdade histórica e até da vontade popular. Como o tempo passa!

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