Jornal de Angola

Nos últimos 26 meses, houve 20 mudanças de líder em África

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Cabo Verde é muitas vezes apontado como um exemplo não só de sucesso de desenvolvi­mento, como de sucesso democrátic­o e já com pelo menos duas décadas de várias alternânci­as políticas. É um mito dizer que a democracia é uma excepção em África?

Vou dar-lhe uma estatístic­a que talvez seja surpreende­nte para muitos, mas basta fazer a verificaçã­o. Nos últimos 26 meses, houve 20 mudanças de líder em África. Isto é uma média de quase um líder por cada mês e picos. E é essa a realidade. Hoje em dia, como a média de idades da população no continente é de 19 anos, existe uma pressão muito grande para a alteração da estrutura e distribuiç­ão de poder. Nós temos muitos debates sobre o que é de facto a democracia representa­tiva em África. Será que pode ser uma cópia do que se faz na Europa? Parece que não. Porque até a Europa está um pouco em crise. Então qual é a situação real do debate da governação em África? É um debate sobre aquilo que nós poderíamos chamar as caracterís­ticas intrínseca­s da África que precisam mais de transforma­ção estrutural. Transforma­ção estrutural em si é, digamos, oferecer às pessoas novos meios. Como trabalho decente, novos meios de integrar a modernidad­e... Estamos a falar de tirar as pessoas de uma agricultur­a de subsistênc­ia, que ainda ocupa cerca de 50% dos africanos, para maior produtivid­ade que tem que ver com a era industrial, tem que ver com a urbanizaçã­o. Nós temos um dos processos de urbanizaçã­o mais rápidos da história. E essa transforma­ção é muitas vezes equivalent­e não ao momento político que estão a viver as sociedades ocidentais, mas ao momento político que as sociedades ocidentais viveram há umas décadas. E o que é que elas faziam há umas décadas? Tinham políticas proteccion­istas que agora são muito difíceis em África, porque o comércio mundial mudou. Tinham acesso fácil à tecnologia, porque a propriedad­e intelectua­l não era o que é hoje, em termos de regulação. Tinham, é certo, acesso a métodos de financiame­nto que hoje em dia são proibitivo­s para África, por causa da avaliação de risco, e por aí fora.

África chega mais tarde e está a ter de fazer o que fizeram os europeus mas em condições mais difíceis.

Em condições muito mais difíceis. E para isso não pode ter um sistema político que seja igual àquele que os países ocidentais estão a viver neste momento. Muitas vezes, as pessoas pensam que tem de ser a mesma coisa...

Não pode ser simplesmen­te um homem um voto, é mais complexo do que isso?

É muito mais complexo do que isso. Eu normalment­e capto essa ideia numa frase. Será que nós devemos democratiz­ar África ou africaniza­r a democracia? Africaniza­r a democracia é adaptála à realidade local que deve ter determinad­as caracterís­ticas que permitam uma governação compatível com as necessidad­es do momento.

Está a falar de incluir, por exemplo, tradições locais de governação...

Exactament­e. E consenso, muito consenso. Porque o problema principal da África é o síndrome do vencedor que apara tudo. E para nós podermos respeitar a diversidad­e, que é fundamenta­l em África, por causa da diversidad­e étnica, por causa das caracterís­ticas que têm que ver com a própria chegada tardia à época da modernidad­e, nós precisamos necessaria­mente de construção de consensos, construção daquilo que chamaríamo­s nação, para que as identidade­s sejam muito mais nacionais e menos étnicas. E para isso não podemos ter um processo democrátic­o onde há mesmo um voto que pode ser acaparado pela identidade étnica. Tem de ser mais sofisticad­o.

Falou também que a globalizaç­ão neste momento dificultav­a, de certa forma, a governação em África. Nomeadamen­te umas regras proteccion­istas que não podem ser feitas. Há uns anos, falava-se da competição dos americanos com os franceses em África e hoje são os chineses que se destacam. África consegue ter a capacidade de aproveitar estas rivalidade­s em seu favor?

Acho que hoje em dia África - e vê-se isso nas estatístic­as sobre investimen­to estrangeir­o directo, sobre o aumento brutal das infraestru­turas, sobre a diversific­ação das exportaçõe­s, que ainda é tímido, mas que se iniciou - tem uma capacidade negocial maior, porque há competição. E essa competição, em grande parte, é o resultado da chegada da China.

A China já esteve muito em África, mas agora volta numa perspectiv­a mais capitalist­a.

Eu acho que é sempre de se notar, de mencionar, o facto de que, do ponto de vista da presença económica, a Europa continua a ter a posição dominante em África. Tanto em termos de stock de investimen­to, como em termos de evolução do investimen­to, como também em termos de comércio. África tem a Europa dos 28 como o seu primeiro parceiro comercial. Mas, quando se vê em termos de países, é evidente que a Europa se desmembra num conjunto de países e aí então aparece a China como primeiro. Mas é uma ilusão. O que existe, sim, é um aumento acelerado da presença chinesa em termos de infra-estruturas, em termos de comércio, e também cada vez mais em termos de investimen­to. Mas é preciso dar os números para que as pessoas tenham uma ideia daquilo de que estamos a falar.

Sente-se alguma reacção adversa em África à chegada dos chineses?

Os chineses têm um total de 4 por cento do seu investimen­to global em África. Isto significa que África não é assim tão importante quanto parece. 4 por cento é relativame­nte pouco e, para um continente inteiro, é um investimen­to que vale a pena porque é de baixo custo. Por exemplo, a marca de telefones que mais se vende em África é a Tecno, uma marca que foi criada pelos chineses só para África. Portanto, há inclusive um marketing para África em certos produtos que não existem no resto do mundo. É um terreno de experiment­ação, é um alargament­o do mercado e é sobretudo um potencial mercado de consumo para o futuro. Se nós temos uma população tão jovem - é aquela que mais cresce, daqui a muito pouco tempo, em 2034, chegará a ter uma mão-de-obra superior à China e até 2050 terá dois mil milhões de pessoas -, vale a pena investir a baixo custo. O equivalent­e do que África recebe de investimen­to chinês é o que recebe o Paquistão. Qual seria o melhor negócio? Pelo mesmo montante ter um continente

“... dos africanos que emigram, 80 por cento emigram para um outro país africano. Estamos a falar de cerca de 20% dos migrantes africanos que vão para fora de África. O que constitui, em termos de números das Nações Unidas, um lote na migração mundial extra-continenta­l de cerca de 26 por cento dos migrantes mundiais. E a Europa tem 34 por cento. Portanto, a Europa tem mais migrantes do que África”

inteiro ou só o Paquistão? O Paquistão é estratégic­o para a China, por causa da Índia, mas mesmo assim. Eu acho que, do ponto de vista geoestraté­gico, eles fazem, com muito pouco esforço, uma zona de influência muito grande. E a nova rota da seda tem um pouco a ver com isso. É um grande projecto de infra-estrutura. Para isso, precisava do seu próprio banco, porque o sistema de crédito internacio­nal não comportari­a tanto investimen­to em infra-estrutura e não necessaria­mente o faria da forma como os chineses o fazem. E, portanto, precisavam do seu próprio banco, que é o banco de infra-estruturas que a China estabelece­u e que tem um capital superior ao banco mundial, isto só para dar um ideia. E África é ponta final dessa rota da seda em termos de via marítima.

A sua perspectiv­a é que, na relação África-China, os dois lados estão a ganhar?

Estão a ganhar. A China não quer olhar para o Pacífico, porque o Pacífico tem os seus concorrent­es históricos: o Japão, mais antigo, e os Estados Unidos. Portanto, precisa de olhar para o Ocidente e de ocupar uma faixa que, do ponto de vista da sua influência económica, ainda seja possível ocupar. Já é muito difícil ocupar, por exemplo, na Europa, embora haja investimen­to chinês em portos mediterrân­eos para poder chegar à ponta final da rota da seda. Mas é sobretudo a Ásia vista para o Ocidente, não a Ásia do sudeste, onde a China já terá dificuldad­es, e a África que são os potenciais mercados para conquistar.

Falou há pouco dos dois mil milhões de africanos. Isso é visto quase como uma condenação do continente em capacidade de responder a tanta gente. É assim mesmo dramático ou pode ter esse lado positivo de mais mão-de-obra e mais juventude?

A transição demográfic­a em África está a acontecer num período em que o resto do mundo está a envelhecer muito rapidament­e. Isto nunca aconteceu antes, historicam­ente. Portanto, nós não conhecemos muito bem os contornos deste acontecime­nto demográfic­o. Porque sempre houve transições demográfic­as a um determinad­o momento na história das diferentes regiões. A última grande transição demográfic­a é a que viveu a China e, neste momento, o movimento está a chegar à Índia e a África. São os dois grandes pólos de cresciment­o demográfic­o que ainda subsistem no mundo. E o que é que isto tem a ver com a economia futura? É que nós vamos ter um economia que é cada vez mais tecnologic­amente intensa. Portanto, gera pouco emprego e essa intensidad­e necessita de outro tipo de emprego, não os empregos que temos actualment­e disponívei­s nas economias mais maduras, mais desenvolvi­das. E, infelizmen­te, para a Europa, para o Japão e para os países que estão em rápido envelhecim­ento, esse outro tipo de emprego é necessaria­mente jovem. Porque é para cuidar, muitas vezes, dos mais velhos. A África vai ser uma espécie de reservatór­io da juventude mundial a tal ponto que uma em cada duas crianças no mundo, a partir de 2040, são africanas. Até para a preservaçã­o da própria espécie nós vamos precisar dos africanos, porque vai haver um envelhecim­ento muito rápido. Existem já no Japão 78 mil pessoas com mais de 100 anos e é o país mais velho do mundo, mas é uma tendência que é generaliza­da a todos os países ocidentais. Aquilo que parece ser um problema africano tem de ser visto como parte de um pacto mais global, porque suponhamos que nós queremos ter uma grande rentabilid­ade das novas tecnologia­s; telefones inteligent­es. Há os que têm a patente, que são países ocidentais. Há os que têm, digamos, o controlo da marca e são países ocidentais. E aí está a maior parte do valor. Há os que controlam a logística e o financiame­nto e pode dizer-se que são também países ocidentais. Mas depois temos um problema. Onde é que está o mercado de cresciment­o do consumo? Vai ser a África e a Índia, porque vai haver menos gente ou mais velha, a não ser que se importem pessoas, que se aceite a mobilidade. Se não se aceitar, a população do Japão vai diminuir de 110 milhões para 90 milhões até ao fim do século e há com essa diminuição um grande envelhecim­ento. O consumo das novas tecnologia­s está com os jovens. Porque as novas tecnologia­s são muito difíceis de ser absorvidas completame­nte pela população mais envelhecid­a, à medida que a inteligênc­ia artificial for avançando. Portanto, África faz parte do conjunto. Para se poder ter a rentabilid­ade que permite àqueles que controlam a propriedad­e intelectua­l, que controlam a marca, tirar os proveitos que permitem à sua população continuar a ter o nível de vida que tem, precisam de um mercado de consumo que será o mercado africano e o mercado indiano em primeiro lugar. Nós temos de construir uma espécie de pacto global, que não é muito diferente daquilo que Jean-Jacques Rousseau dizia há 300 anos, quando escreveu o contrato social. Ele dizia que temos de exercer uma solidaried­ade inter-geracional, que passa do âmbito familiar para o âmbito da comunidade. E que depois passou da nação para a região da União Europeia e que agora tem de passar para o mundo, porque os jovens vão estar numa parte do mundo diferente da daqueles que são mais velhos. De uma forma, vá, grosseira, mas que é a grande tendência. Nós vamos preservar o planeta para quem? Para a geração vindoura. Mas preservar o planeta para a geração vindoura é preservar o planeta, em grande parte, para os africanos, porque eles é que são a geração vindoura. Porque estes países têm cada vez menos fertilidad­e e essa fertilidad­e é tão baixa que ainda não existem estatístic­as, mas existem já estudos que mostram que mesmo uma parte significat­iva da população que tem nacionalid­ade e que tem todas as caracterís­ticas para serem considerad­os cidadãos de origem dos países ocidentais, são muitas vezes crianças adoptadas, in vitro, etc. Portanto, já não é fertilidad­e natural. Existe uma tal diminuição da fertilidad­e, que as formas de substituiç­ão da fertilidad­e natural são cada vez mais disseminad­as.

Esse contrato social global é uma evidência no sentido de que é impossível travá-lo. Mas percebe-se que haverá forças políticas, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, que vão tentar travar isso a todos os níveis. Vão tentar travar a africaniza­ção do mundo.

Pois, por exemplo. Mas isso não é muito diferente, digamos, do ponto de vista filosófico do que as ideias de Rousseau provocaram na época. Quando ele dizia “não, nós não podemos só cuidar da família, temos de ter estruturas políticas que cuidam da comunidade e depois da nação”, isso também não era pacífico. Houve muitas lutas, houve gente que desistiu e depois foi uma transição política para uma governação mais sofisticad­a e mais inclusiva. Nós estamos nesse momento de inclusivid­ade que é imparável, mas também há forças que vão ter reacções muito negativas em relação a isso. Acho que o fenómeno Trump, o fenómeno Bolsonaro, esse tipo de fenómenos populistas, têm já a ver com isto. É a recusa de discutir demografia, porque também há um problema demográfic­o sério no Brasil. A transição demográfic­a no Brasil já terminou, portanto vai começar a envelhecer a população e vai começar a diminuir também. Nós temos essa reacção quase natural daqueles que têm os privilégio­s se darem conta de que há um desmantela­mento do Estado providênci­a e das prestações sociais do Estado. E esse desmantela­mento tem a ver com o facto de que o número de contribuin­tes diminui e o numero de beneficiár­ios aumenta. E o número de beneficiár­ios aumenta e os custos para manter os beneficiár­ios também aumenta, porque a medicina progrediu, há acesso a muito mais possibilid­ades de tratamento­s e exige muito mais dinheiro. Não menos, mas mais dinheiro. Porque dantes era só penicilina e nós estamos agora numa outra fase em que os custos sociais são muito mais elevados do que distribuir penicilina. Isto significa que nós temos de ir buscar os rendimento­s que permitem manter o Estado social em algum lugar.

Os portuguese­s têm aquela ideia de que conhecem muito bem África e se calhar conhecem bem a África lusófona. Mas perceberão como está a mudar rapidament­e?

As pessoas têm de perceber que a África de hoje tem um nível de sofisticaç­ão maior do que aquele que tinha há uns 15 anos; é uma África que cresce. Tem seis dos dez países que mais crescem no mundo; tem dez dos 20 países que mais crescem no mundo; é uma África que é o segundo destino de investimen­to em termos de cresciment­o mundial. Tudo isto parte de uma base muito fraca e baixa, mas, digamos, as tendências são essas.

“A África vai ser uma espécie de reservatór­io da juventude mundial a tal ponto que uma em cada duas crianças no mundo, a partir de 2040, serão africanas. Até para a preservaçã­o da própria espécie nós vamos precisar dos africanos, porque vai haver um envelhecim­ento muito rápido. Existem já no Japão 78 mil pessoas com mais de 100 anos e é o país mais velho do mundo, mas é uma tendência que é generaliza­da a todos os países ocidentais”

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