Jornal de Angola

Só 20 por cento dos migrantes africanos vão para fora de África

- Leonídio Paulo Ferreira

O académico guineense Carlos Lopes foi adjunto de Kofi Annan na ONU e é hoje professor na Nelson Mandela School of Public Governance, na Cidade do Cabo. O Diário de Notícias entrevisto­u-o em Lisboa, onde participou na conferênci­a ÁFRICA XXI. Na entrevista, Carlos Lopes prevê, em parte, um quadro favorável ao futuro de África. “Vai ser uma espécie de reservatór­io da juventude mundial, a tal ponto que uma em cada duas crianças no mundo, a partir de 2040, são africanas”

O primeiro erro, quando se fala de África, é fazê-lo como se fosse toda igual - porque estamos a referir realidades muito diferentes. Já não falo só da tradiciona­l divisão entre África do Norte, árabe, e África subsaarian­a. Falo de um país como a África do Sul, que não é comparável à Etiópia; ou de um Moçambique, bem diferente de uma Nigéria. Portanto, é melhor falar de Áfricas?

Sim. Isso seria o mais correcto, até porque, do ponto de vista do contexto histórico, há muitas diferenças. Mas, ao mesmo tempo, faz sentido falar de uma África para certas coisas. Por exemplo, o conjunto dos países africanos tem uma grande dependênci­a das matérias-primas. Mesmo aqueles que não possuem uma grande riqueza de matérias-primas acabam por, por relações de vizinhança ou por dificuldad­es logísticas, depender um pouco dessa relação que África tem com as matérias-primas. Na classifica­ção das Nações Unidas, há 35 países em África que são altamente dependente­s de exportação de matérias-primas. E essa definição comporta os países que têm pelo menos 80 por cento das suas exportaçõe­s.

Isso pode abranger desde um gigante petrolífer­o como a Nigéria, até um pequeno país...

Pode ser um pequeno país como a Guiné-Bissau que exporta castanha de caju. Podem ser matérias-primas mais extractiva­s, outras não, mas quase todos os países têm essas caracterís­ticas e eu penso que a transforma­ção estrutural da África passa necessaria­mente por essa mudança. E aí nós vemos como um país como a Argélia pode parecer muito diferente de um país como Angola, mas, do ponto de vista da estrutura económica, são muito parecidos. Um país como Marrocos, que está numa senda de industrial­ização, pode ser na aparência muito diferente de um país como a Etiópia, mas o programa de transforma­ção estrutural da Etiópia, em termos de industrial­ização, é muito parecido. Há semelhança­s e há também diferenças. E outra caracterís­tica que acho importante do ponto de vista estatístic­o: dividiu-se muito a África em dois pedaços. A África do Norte é sempre apresentad­a nos organismos internacio­nais junto com o Médio Oriente, com o qual ainda tem menos que ver, a não ser a língua, mas, do ponto de vista da estrutura económica, os países do Golfo não têm nada que ver com os países da África do Norte. E a África subsaarian­a muitas vezes é encaixada com as Caraíbas e com o Pacífico, como é o caso das negociaçõe­s com a Europa. Mas também tem muito pouco que ver com as Caraíbas e tem muito pouco a ver com o Pacífico. Ou seja, temos uma espécie de mentalidad­e meio colonial que dividiu o mundo em diferentes pedaços que são reconhecív­eis e que existe um certo conforto no tipo de análise que se faz e acaba por se encaixar, digamos, na gestão desse conforto. Por exemplo, na geografia, continuamo­s a utilizar a projecção cartográfi­ca de Mercator, que não tem nada que ver com a massa territoria­l, quando existe uma projecção, a de Peters, que dá, efectivame­nte, um planisféri­o correcto.

Evidente nessa questão do Mercator é Angola parecer do tamanho de Espanha, quando é na realidade três vezes maior.

Exacto. Aí temos a situação em que uma empresa de alta tecnologia como a Google, no seu Google Maps, continua a utilizar o Mercator. Tem que ver com uma espécie de conforto que leva a que as pessoas analisem África de um certo prisma.

Acha que o Mercator desvaloriz­a África?

Tenho a certeza. Não é uma desvaloriz­ação acidental, porque se as pessoas soubessem que África é do tamanho dos Estados Unidos, da China, da Índia e da Europa Ocidental e do Japão juntos, as pessoas teriam uma outra imagem do continente em termos de diversidad­e. E, aí sim, poderiam entender que, de facto, a África é muito mais complexa do que se imagina. Por outro lado, nós sabemos que seis economias representa­m 70 por cento do PIB africano. Portanto, nós temos um conjunto de países, 40 e tal países, que são muito pequeninos do ponto de vista económico, à escala mundial, e, portanto, se não houver semblante de unidade para poder dar, digamos, estofo, para que esses países possam evoluir, desenvolve­r-se, negociar... é muito difícil.

Olhando para uma África anglófona, uma lusófona, uma francófona, o legado colonial faz diferença hoje em dia ou ao fim de 50 anos de independên­cia isso já se esbateu?

Ainda existem muitos traços que podem ser verificado­s de herança colonial diferente nos vários países. Mas, de uma maneira geral, acho que já se esbateu. Por exemplo, nós temos países da África Austral, anglófonos, que parecem muito mais organizado­s e estruturad­os e que tiveram, digamos, uma urbanizaçã­o consequent­e, tiveram uma descentral­ização administra­tiva e que têm caracterís­ticas muito mais próximas da era industrial. Mas também temos exemplos de países anglófonos como a Nigéria ou a Serra Leoa que estão num descalabro total. Também temos neste momento países que crescem muito na África dita francófona, como é o caso da Costa do Marfim, como é o caso do Senegal, e depois temos países que estão numa letargia total em termos de desenvolvi­mento, que é o caso de um país como os Camarões.

A África lusófona é mais coerente...

Não. Temos o caso de Cabo Verde, que tem uma trajectóri­a consequent­e, e temos uma Guiné-Bissau, que está em conflito perene.

Esses dois países tiveram até um processo de luta de libertação comum...

E até, digamos, de história colonial muito próxima e com uma administra­ção comum durante a maior parte da sua vivência colonial. Isto prova que são as caracterís­ticas e os contextos específico­s de cada país que determinam um pouco a política. Mas há grandes traços da política africana que são comuns a todos. Por exemplo, a construção do Estado pós-colonial em África, na maior parte dos casos, foi uma extensão dos direitos adquiridos pelos cidadãos aos sujeitos. Porque o que existia durante o período colonial era que havia uma categoria, uma elite, digamos, que era considerad­a cidadã e tinha todos os direitos de cidadania. E aí incluía-se uma parte da população africana, que nós chamávamos de assimilado­s.

Com as independên­cias, automatica­mente toda a gente passou a ser cidadão...

Na retórica. Porque, se não tem sequer um registo civil - e no caso de 40 por cento da população africana não tem -, para o Estado não existe. Fala-se muito da informalid­ade no sector económico, mas é uma informalid­ade que vai muito para além da economia. Se a pessoa não tem registo civil, não tem certidão de nascimento ou até certidão de óbito, não existe para o Estado. E, portanto, faz transacçõe­s económicas e sobrevive para lá da existência legal.

Estamos a falar de pessoas que não têm acesso à saúde, educação, porque oficialmen­te não existem. Disse 40 por cento?

40 por cento dos africanos. E isso é transversa­l em quase todos os países. Alguns têm de uma forma mais profunda e outros não. E hoje em dia tudo isso é possível de superar através da biometria. Como foi feito, aliás, na Índia, que tinha o mesmo problema. Portanto, conhecese a técnica e a tecnologia para o fazer, mas ainda não é o caso. Nós temos também outras caracterís­ticas como a forma como a administra­ção se orientou para as indústrias extractiva­s. Têm tudo de colonial. Não é só, por exemplo, o facto de se exportar petróleo, diamantes ou ouro ou outras coisas desse estilo. É também a infra-estrutura que é posta a funcionar para esse tipo de produção e para esse tipo de economia. E isto não é diferente na África do Norte, não é diferente na África do Sul. Na África do Sul será a platina, na Argélia será o gás e o petróleo, mas temos sempre a infra-estrutura ligada à extracção.

Pode perceber-se, por exemplo, que, no período imediato pósindepen­dência, talvez não houvesse elites preparadas para gerir uma economia mais complexa. Mas, mais uma vez, estamos a falar de 50 anos depois.

Hoje em dia, não existe esse problema, digamos, de capacidade­s. Durante bastante tempo, o problema e o debate na ajuda ao desenvolvi­mento era a criação de competênci­as técnicas e havia cooperação internacio­nal para isso. Hoje em dia, nós não temos esse problema. Temos o problema, sim, de que na maior parte dos países africanos não existe capacidade de absorção de toda a qualidade de mão-deobra disponível. E por isso é que a diáspora se alimenta da exportação, digamos, de cérebros africanos. Temos estatístic­as que provam isso. Por exemplo, nos Estados Unidos, dos vários grupos migrantes do país aqueles que têm a formação mais elevada são os nigerianos.

Pensamos nos migrantes africanos, sobretudo, como desesperad­os a tentar o eldorado europeu. Mas há outra migração africana que é de pessoas altamente qualificad­as.

Exactament­e. O sistema nacional de saúde na GrãBretanh­a tem cerca de 5 por cento dos seus enfermeiro­s que são de origem africana. Portanto, há uma outra migração altamente qualificad­a que muitas vezes é binacional. Passa despercebi­da nas estatístic­as, porque são indivíduos que, por causa até do seu nível de integração, facilmente conseguem acesso às nacionalid­ades dos países de acolhiment­o. Acabamos por ter uma impressão distorcida dos migrantes. Mas a definição de migrante das Nações Uni

das inclui todos aqueles que nasceram num país e vivem noutro, independen­temente da nacionalid­ade e dos documentos que tenham. E, segundo essa estatístic­a, agora há cerca de 250 milhões de pessoas no mundo que têm essas caracterís­ticas. E, desses 250 milhões, se nós formos ver a estatístic­a em termos de continente­s e não de países, a África é o que tem menos. E, dos africanos que emigram, 80 por cento emigram para um outro país africano. Estamos a falar de cerca de 20 por cento dos migrantes africanos que vão para fora de África. O que constitui, em termos de números das Nações Unidas, um lote na migração mundial extra-continenta­l de cerca de 26 por cento dos migrantes mundiais. E a Europa tem 34 por cento. Portanto, a Europa tem mais migrantes do que África.

O que contraria os discursos populistas...

Se nós formos olhar só a migração da África para a Europa, os números também são muito claros. Estes números são da Frontex, nem são das Nações Unidas. Mostram que 94 por cento dos africanos que vivem na Europa, migrantes, são pessoas que entraram legalmente. Portanto, há 6 por cento que entram ilegalment­e. E desses 6 por cento temos uma grande percentage­m que chega pelo Mediterrân­eo, que são objecto daatençãod­amediaedao­pinião pública. Mas são números muitopeque­nos.Noanopassa­do, havia muito mais do que neste ano. E no ano anterior havia muito mais do que em 2018, e poraífora.Temvindoad­iminuir de uma forma acentuada.

Portanto, quando diz que são legais,significaq­ue,obviamente, os países de acolhiment­o estão a incentivar essa emigração.

Estão, pelo menos, a dar os vistos. As pessoas não transgredi­ram a modalidade de visto que tiveram. Senão, são ilegais. É um número muito pequeno. Mas é um número que encanta as estatístic­as e que faz discutir muito.

Mas olhando então para os países africanos. Essa perda de pessoas qualificad­as, essa perda também de juventude, é uma das explicaçõe­s dos problemas do continente?

Acho que não, porque a diáspora está a contribuir de uma forma muito clara para o desenvolvi­mento dos países. Porque é que digo isto? Porque durante bastante tempo a diáspora tinha perdido as conexões com os países de origem. Por várias razões. Havia problemas de comunicaçã­o, os transporte­s não eram o que são hoje, o acesso à Internet não era o que é hoje, etc... Nós, hoje em dia, temos uma situação em que a conexão entre a diáspora e as famílias dos países de origem é muito maior. E isso traduz-se, por exemplo, nas remessas de emigrantes. As remessas de emigrantes, em 2000, eram cerca de seis mil milhões de dólares. Hoje, são 81 mil milhões de dólares, Europa-África.

Isso também significa que a diáspora acredita, de alguma forma, em África?

Não só acredita como contribui mais do que a ajuda ao desenvolvi­mento. Porque estamos a falar de uma ajuda ao desenvolvi­mento que estagnou à volta dos 50 mil milhões há mais de uma década e o aumento não vem da ajuda ao desenvolvi­mento. Vem das remessas de emigrantes. Portanto, quando se pede aos países africanos que estanquem a migração, eles vão dizer que sim, mas na realidade é contra os seus interesses.

Para muitos países, pode ser já uma das principais fontes de divisas.

Claro, sem nenhuma dúvida. É o caso de um país como Cabo Verde, que recebe mais de remessas de emigrantes do que recebe de ajuda ao desenvolvi­mento. Mas é também a verdade em relação ao Egipto, à Tunísia... É verdade em relação a uma multitude de países. Etiópia, etc. Nós temos aqui uma situação em que não é do interesse dos países africanos estancar a migração. Talvez regulála. Mas estancá-la não.

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