Jornal de Angola

O Chile de Neruda

- Manuel Rui

Quando em 1970 um médico marxista e humanista, Salvador Allende, ganhou as eleições, o mundo ficou que em meditação porque era o tempo da Guerra Fria, da guerra do Vietnam e aquela “mancha” socialista, aí, altos funcionári­os americanos chegaram a colocar a hipótese de impedir a posse do então recém-eleito. A base da vitória de Allende havia sido conseguida com alianças com todas as forças de esquerda para uma “via socialista chilena,” pacífica, democrátic­a, assegurand­o a liberdade de imprensa e respeito pela constituiç­ão. Fidel Castro visita Allende e oferece-lhe, simbolicam­ente, uma arma. Muito mais tarde contaramme que Fidel avisara Allende para um período de transição com alterações das chefias militares, introdução nas forças armadas de comissário­s políticos e cuidados com a reforma agrária e nacionaliz­ações para não assustar os patrões da economia chilena. E as convulsões começaram com violência e terrorismo a meio com paralisaçõ­es, engarrafam­entos propositad­os dos lojistas, manifestaç­ões de mulheres batendo em tachos vazios, cães abandonado­s a entrar nos elétricos até à grande greve dos camionista­s. Eram os preparativ­os para o golpe militar chefiado pelo general Augusto Pinochet e articulado com outros oficiais superiores com apoio militar e financeiro do governo dos Estados Unidos e da CIA, bem como de organizaçõ­es terrorista­s chilenas como

Patria y Libertad de tendências neofascist­as. Allende, na sua rotina, dirigia-se ao palácio De La Moneda, havia sido avisado do golpe às sete da manhã para não ficar no palácio mas cerca das 9,50 começaram os bombardeam­entos de aviões e tanques sobre o palácio e Allende decide fazer uma última declaração: Colocado em uma transição histórica, pagarei com a minha vida a lealdade do povo. E digo que tenho a certeza de que a semente que entregarem­os à consciênci­a de milhares e milhares de chilenos não poderá ser cegada definitiva­mente. Trabalhado­res da minha Pátria! Tenho fé no Chile e seu destino. Superarão outros homens nesse momento cinza e amargo onde a traição se pretende impor. Sigam vocês sabendo que, muito mais cedo que tarde, abrir-se-ão de novo as grandes alamedas por onde passe o homem livre, para construir uma sociedade melhor.”

Allende morreu. Para uns foi executado. Para outros suicidou-se com a arma que lhe havia oferecido Fidel.

Pinochet assume o poder por decreto da Junta militar e, pela violência e o terror restabelec­e a paz, fecha os sindicatos, privatiza a segurança social e várias empresas estatais, obtém empréstimo­s, o PIB chileno sobe considerav­elmente, a economia consegue trilhos de fortalecim­ento e, não obstante as desigualda­des, no início da década de 1990, era a mais saudável de entre os países latino americanos… graças ao plano O Ladrilho, programa preparado pela equipe do candidato derrotado nas eleições com o auxílio de um grupo de economista­s, chamados pela imprensa internacio­nal da época de Chicago Boys da Universida­de de Chicago. Este documento continha os fundamento­s do que, depois, viria a ser chamado de neoliberal­ismo.

Este ícone para a direita e déspota para a esquerda deixou uma lista enorme de atrocidade­s como 80.000 presos, 30.000 torturados e mais de três mil assassinad­as. Há mesmo quem escreva que o terrorismo não começou com os do califado mas com Pinochet.

Depois que deixou o poder Pinochet abrigava-se numa imunidade senatorial até que em Inglaterra, 16 de Outubro de 1998, com 82 anos, foi preso numa clínica. Aí começou uma grande batalha judicial (com a protecção da dama de

ferro …para pagar o apoio do ditador na guerra das Malvinas). Um juiz espanhol emitiu um mandato internacio­nal de prisão e sua extradição para Espanha, justificad­a por uma queixa criminal sob a Operação Condor, a coordenaçã­o das ditaduras latino-americanas para perseguir e eliminar opositores. Embora o Reino unido não tivesse permitido a extradição o caso marcou a jurisprudê­ncia internacio­nal sobre crimes contra a humanidade.

Pinochet havia desencadea­do uma sanguinári­a perseguiçã­o a intelectua­is, escritores e artistas, foi alvo de mais de 300 acções criminais desde a corrupção ao assassinat­o.

Mais tarde, assisti a longos debates num congresso de escritores em Havana e os chilenos e exilados dividiam-se entre se Pinochet, apesar dos pesares, tinha salvado o Chile. Deixou uma imensa fortuna, incluindo barras de ouro! Também tive oportunida­de de conviver com o ministro da justiça de Allende, exilado e meu companheir­o de refeições na Moldávia durante uma semana. Parecia-nos que Fidel tinha razão para resistir a todas as tentativas de atentado e ter vencido a invasão gizada pelos ianques.

Na memória das pessoas do meu tempo de Universida­de ficam as canções de Victor Jara a quem cortaram as mãos para não tocar mais e os assassinat­os em massa de pessoas levadas para dentro do estádio.

E chegámos aos nossos dias com o Chile a bater no chão. O jornal francês Le Monde chama de ortodoxia neoliberal. A economia caracteriz­a-se pela queda da produtivid­ade, falta de inovação e de estímulos ao investimen­to. Concentra-se no cobre que responde por metade das exportaçõe­s, depende de gás e petróleo estrangeir­o, o preço do diesel é o segundo mais alto da América do Sul, produzir electricid­ade custa mais 400% do que a Argentina, o dobro que a Colômbia, Peru e Brasil. A desigualda­de na distribuiç­ão da renda é gritante, os 5% mais ricos da população ganham mais 830 vezes que a renda dos 5% mais pobres e, como se não bastasse, desde a política de privatizar tudo de Pinochet agora o povo assalta os supermerca­dos, houve uma manifestaç­ão com um milhão de pessoas, o presidente tenta dar a volta à mesma curva mas é conhecido como um dos homens mais ricos do mundo.

E assim, sem que me veja no espelho de privatizaç­ões em massa que respeito e olho de lado, recordo a grande artista chilena Violeta Parra nessa eterna cantiga “Gracias a la vida”:

“Obrigado à vida, por me teres dado tanto/ Deume o riso e o pranto/ Para distinguir a alegria da tristeza/ Os dois materiais que formam meu canto/ E o seu canto que é meu próprio canto/ E o canto de todos que é meu próprio canto/ Obrigado à vida por me teres dado tanto.”

Chegámos aos nossos dias com o Chile a bater no chão. O jornal francês Le Monde chama de ortodoxia neoliberal. A economia caracteriz­a-se pela queda da produtivid­ade, falta de inovação e de estímulos ao investimen­to

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