Deus no Céu e Jesus no Flamengo!
A semana passada foi de papo cheio, a rebentar de futebol. Sabido que a televisão portuguesa internacional é diferente da BBC inglesa ou da francesa France Internacional, só comecei a perceber a diferença pois a internacional portuguesa com a RTP África acoplada se destina a emigrantes e aos Palop que podem ver a mujimbada e maledicência sobre seus países e outros vão a entrevistas para se projectarem de lá para cá.
As televisões portuguesas, quase diariamente, apresentam debates sobre futebol, alguns de forma mais do que empolgante aos gritos falando uns por cima dos outros, quase insultuosa e, de boa ou má-fé, correspondendo a um convite à violência.
Na tal passada semana não se falou mais noutra coisa do que na Final da Taça Libertadores da América que opunha o Flamengo do Rio de Janeiro ao clube argentino River Plate. Logo começaram por dizer que era o equivalente à taça dos campeões europeus, sempre no princípio de antropologia antropofágica norte-sul. O norte é que sabe, inventou tudo…o sul só imita até uma modalidade inventada na China. Tudo porque o treinador do Flamengo é português de sua graça Jorge Jesus, lia-se num dos rodapés que foram vários: Jorge Jesus o rei da América ou a vitória também é portuguesa! Francamente, a taça dos libertadores da América é para celebrar as independências contra os invasores europeus e tem outra formatação e mais gente à volta do futebol. Só o Flamengo tem mais de quarenta milhões de adeptos e o Brasil está isolado porque todos os outros falam espanhol.
Nem as brasileiras Globo ou a Band News fizeram tanto estardalhaço apenas mostrando e comentando durante os noticiários enquanto uma televisão portuguesa que se dedica, de forma científica, mais do que a manipulações de que fala Chomsky, ao sensacionalismo de agitação e propaganda, monopolizando informações de telefonemas de processos em segredo de justiça que apresenta repetidamente com comentadores de direito criminal, psicologia criminal ou peritos de investigação criminal.
Agora o écran está dividido em quatro partes. Uma para quem está a relatar ao minuto ou ao segundo, outra para o Maracanã onde a torcida do Mengão está a ver o jogo em telões gigantes, mais outra com brasileiros em Portugal em dois lugares distintos organizados pelos “consulados do Flamengo,” finalmente uma quarta parte para Lima, no Perú, estádio para oitenta mil pessoas. Os repórteres são de grande comunicabilidade com destaque para Mariana Águas, a bonita filha de
Rui Águas e neta de José Águas que foi de Benguela para o Benfica. Todos sensacionalizam Jorge Jesus. Enquanto o Mengão perdia por um zero até ao minuto 92, já nos descontos dois golos do goleador da equipa viraram tudo e o Flamengo foi campeão. Um torcedor fez o sinal da cruz e falou:
“Cristo sofreu na cruz mas depois ressuscitou…nós sofremos até ao fim e depois comemoramos.” Diga-se de passagem que Jesus antes de cada jogo reza em voz alta com os jogadores avé marias e padre nossos.
No quadrado onde estavam os comentadores, antigas estrelas como Futre e Octávio, falaram nos detratores que andavam a dizer que o resultado foi mais demérito dos argentinos do que mérito dos brasileiros. Octávio comentou: “é sempre assim, estão doentes e não vão ao veterinário!”
No rodapé, de vez em quando, lia-se: “Transmissão em permanência.”
Nem quando Mourinho ganhou tudo se endeusou tanto um “mister.” Dizem que Jesus quando chegou ao plantel disse que o tratassem por “mister” como se usa em Portugal. Engraçado que no meu tempo do futebol pontapé de canto era corner, guarda-redes era keeper, grande penalidade era penalty e fora-dejogo era ofside…
Este exaltar a portugalidade em prolongamento é uma das clivagens daquilo a que se chamou lusofonia que acaba em epifenómeno na decorrência do fim do império. Lembro-me em Coimbra a estudar à noite e a ouvir um programa de música francesa, um programa de música italiana, um programa de música brasileira…e um programa de música africana, tudo no mesmo saco, um aviário, a guetização cultural. Quando um nigeriano ganhou o Nobel da Literatura, ninguém da comunidade britânica veio dizer que foi um escritor africano de expressão inglesa. A utilização do termo lusofonia em vez, por exemplo, de portugalidade, já tem uma remissão aos lusos. Não se pretende uma ecologia das antropologias do sul, isto é, um diálogo dos saberes do norte com as sabedorias do sul, com sua música, seus costumes e outros contextos culturais como a culinária. Se Mia Couto ganhar o Nobel…foi um escritor lusófono. Os ingleses não diriam isso se fosse um australiano ou um sul-africano. Há a literatura moçambicana, angolana ou brasileira. Pior é na política: a Rússia fez uma cimeira com a África mas nem a África do Sul consegue chamar a Europa para uma cimeira… e o Rio de Janeiro continua lindo!
Francamente, a taça dos libertadores da América é para celebrar as independências contra os invasores europeus e tem outra formatação e mais gente à volta do futebol. Só o Flamengo tem mais de quarenta milhões de adeptos e o Brasil está isolado porque todos os outros falam espanhol