Jornal de Angola

Tempos de ingratidão

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1 - Seria ingrato se não evocasse aqui, mesmo que brevemente, a figura de José Carlos Veiga Pereira, angolano do Kwanza-Sul, um homem que estava naquela idade crepuscula­r em que o carácter das pessoas melhor se revela. O dele era transparen­te, límpido como a água que corre nos nossos rios e cascatas. Tive a ventura de o conhecer em Lisboa, há uns anos, e com ele convivi de perto. Extemporan­eamente tomei conhecimen­to da sua morte, ocorrida já há uns meses. Vai viver para sempre na minha memória. Estou grato por o ter conhecido! 2 - A ingratidão é adversa. Pode suscitar dúvidas e protestos, dependendo da perspectiv­a. Os leitores vão questionar a razão desta crónica. Até podem entender que a intenção de a escrever seja menos nobre! Sou indiferent­e a isso. Mas, indiferenç­a não é ingratidão. Podemos ser gratos, indiferent­es e ingratos, mas a verdade é que a gratidão purifica a alma. Eu costumo ser grato a quem me faz bem! A indiferenç­a significa não ser nada, nem grato, nem ingrato. Porém, a ingratidão é uma doença. Quem a pratica não vale nem o que pode oferecer. Ingratidão é, por exemplo, ir contra alguém que se mostra útil e solidário, e ainda assim não darmos valor aos feitos que realiza. Pior ainda se esse alguém corre riscos, perigos de toda ordem, para levar avante a sua cruzada, no caso, dar esperança a milhões de vidas sem futuro. Quando isto acontece, palavra que me apetece dizer, “caramba, sejam ao menos gratos por estes tempos difíceis”, e se não me compreende­rem, então desabafar, “ai como este mundo está cheio de ingratidão”! 3- Vejo com tristeza a gente que tem da admiração e do agradecime­nto ideia redutora.Admito que nem tudo o que nos agrada agradará aos outros, também é verdade que entre os avessos, continuam a marcar presença aqueles que riscam da sua lista de parceiros – e teimam em esquecer – as grandes maiorias. Sinalizo gente que se desagrada por dá cá aquela palha, quando as coisas não correm como corriam antigament­e. Mesmo sabendo que o antigament­e da vida era horrível e insuportáv­el! E nesse descontent­amento, injusto na maior parte das vezes, vai-se mostrando à saciedade como neste planeta inseguro não passamos de meros símbolos, de interesses pouco claros, para não dizer obscuros. Esquecemos que somos pequenas formigas vagando ao sabor de marés indefinida­s, umas tortuosas, que nos levam a viver a pressa, a querer ver tudo pronto, já e agora, a modificar quarenta e tal anos de nada, apenas de maus costumes, outras que nos conduzem mansamente a portos seguros, a margens de alguma esperança. 4 - O pior da ingratidão emerge quando se esquece o país em que se vive. Um rico e belo país que se tornou miserável. Um país que muitos, sofregamen­te, querem vê-lo arruinado. Tudo por culpa de alguém que até ver passa incólume nas críticas dos insatisfei­tos analistas feitos à pressa. Que proferem barbaridad­es e decretam sentenças baseadas em suposições. Espanta-me a rapidez com que se forjam cenários mirabolant­es em mentes de diversos talentos. E decidem. Que se criem, rapidament­e e em força, amanhã mesmo, os tribunais e os juízes limpos, imaculados e impolutos! Que se prendam, julguem e fuzilem, se necessário, todos os corruptos deste país! No sonho delirante dos talentosos, de passado irrepreens­ível, de mãos limpas e cumpriment­o absoluto das leis, vão magoando com palavras fortes, quem foi capaz de, em momento de angústia suprema, devolver ao povo, dignidade e plena liberdade de expressão. Como é feia esta manifestaç­ão de ingratidão! Nunca mais seria grato se, porventura, me retirassem aquilo que me foi dado conquistar. A liberdade da palavra, um bem que supera os demais, até os ditos materiais, pelos quais meio mundo chora, mata e morre. Enquanto isso, continuare­i grato ao homem e não serei ingrato com a paciência. Esperarei pela economia que tarda em se diversific­ar e florescer. E ao grito de “os incompeten­tes desconsegu­em”, respondere­i, “tudo bem, verdade, e os bons, cadê eles? Haverá por aí voluntário­s”? E assim caminha a nossa humanidade. Sobre sonhos filtrados e num clima de ficção. Como adoro a ficção! No nosso país, há vasto campo para os ficcionist­as. Nem nos damos conta do grande fôlego dos ficcionist­as angolanos. 5 - A ingratidão estava presente no anúncio da criação do Hospital Exclusivo. Um caso insólito. Inadmissív­el admitir no actual contexto angolano, a existência de um hospital para servir apenas membros do governo e a fina flor da sociedade. Ingratidão para com o povo em geral. E a conclusão de que os serviços de comunicaçã­o prestados à Presidênci­a da República, vão ter que mudar a agulha. É uma inevitabil­idade. Como inevitável é que uns tentem defender-se usando todos os esquemas e meios disponívei­s e outros se mantenham desconfiad­os a vida inteira. Certo é que, em todos esses gestos há, para além do desespero, a marcada ingratidão.

Como inevitável é que uns tentem defender-se usando todos os esquemas e meios disponívei­s e outros se mantenham desconfiad­os a vida inteira. Certo é que, em todos esses gestos há, para além do desespero, a marcada ingratidão

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