Jornal de Angola

Uma comunidade perdida no tempo

- Luísa Rogério

“Tempo do Caetano” é a forma de os moradores do Tchitongot­ongo referirem-se ao período colonial, em alusão clara a Marcelo Caetano, um dos redactores da Constituiç­ão do Estado Novo e sucessor de Oliveira Salazar na presidênci­a do Conselho de Ministros de Portugal. Esta reportagem retrata a vida dura na comunidade. Imagine-se o que é fazer seis horas a pé, para ir e voltar da escola. Debaixo de sol abrasador. “No Tchitongot­ongo, estamos a viver mal”, lamenta um agricultor-criador

Vê-se um ou outro remendo na estrada, que se pode considerar razoável para a realidade angolana. Os poucos buracos não condiciona­m a jornada. Sequer estremecem a viatura. Assim, percorremo­s tranquilam­ente os oitenta quilómetro­s que nos separam do Lubango. Depois de deixarmos a sede comunal da Quihita, a seguir à aprazível vila da Chibia, enveredamo­s por um atalho. A partir daqui é terra batida. Os sinais de orvalho no chão humedecido anunciam a época das chuvas, da qual estamos a poucos meses. Mas o capim e troncos ainda estão ressequido­s.Quanto mais a viatura penetra no mato, maior a impressão de que participam­os numa dura prova de rally. Perguntas, algo descabidas, reflectem receios de quem desconhece o significad­o da expressão “casa sem era nem beira”, no caso metaforica­mente associada a espaços geográfico­s. Ricardo Moreno, o administra­dor comunal da Quihita, limita-se a sorrir. O comandante local da Polícia Nacional assegura que a situação está controlada.

O Estanislau Costa tenta equilibrar o carro ao longo do sinuoso caminho. Entre solavancos e sobressalt­os mal disfarçado­s, insistimos na teoria da inexistênc­ia de vida nas redondezas. Contudo, as marcas evidenciam que não somos os únicos a perseguir os trilhos da seca. Alheio ao perigo, o cachorrinh­o atravessa a “estrada”. Um grupo de crianças corre atrás do amiguinho de quatro patas. Onde há cães habita gente, recorda alguém. Amiúde, vão aparecendo casas de pau-a-pique. Andamos, andamos e novamente a sensação do vazio. “Ficamos aqui”. Ricardo Moreno desce da viatura na companhia do agente de autoridade. “Vamos esperar pela caravana que vai distribuir comida. Vocês vão por ali”, indica um ponto imperceptí­vel no meio do descampado.

Momentos após a retomada da marcha, ouvimos o ruído de motores.Os portadores de ajuda alimentar aproximam-se. A par desta, a abertura de furos para captação de água destaca-se entre as respostas do Executivo e da Sociedade civil com vista a diminuir o impacto da seca no seio das populações. Ao redor de um desses furos encontramo­s histórias entrelaçad­as. Diferentes de tudo quanto tínhamos testemunha­do, mas similares entre si no tocante às caracterís­ticas que remetem os protagonis­tas para um plano totalmente dissociado da noção de cidadania.

Com cerca de mil e oitocentos habitantes, Tchitongot­ongo é o mais populoso dos 4 bairros periférico­s da comuna da Quihita. Tratase de pequenos agregados de casas de construção precária. À excepção do poço de água, não há qualquer vestígio de infra-estruturas. Faltam escolas e postos de saúde. Sentese a ausência absoluta da administra­ção pública. Quem falou em lojas? A pior cantina do Lubango serviria para os mais novos aprenderem o que fazer com dinheiro, bem desprovido de qualquer utilidade para eles. A maioria dos habitantes nunca viu um televisor. Mesmo que tivessem pilhas, jamais poderiam ouvir rádio. As ondas hertzianas perderam-se muito para além da Chibia.

O lugar onde se construiu o dispositiv­o destinado à captação de água seria, hipotetica­mente, uma espécie de centro da zona. É neste ponto onde os moradores e seus animais, com relevância para os bois, se encontram. Aqui, cruzam-se vidas e histórias como a dos Ngandu. A vivência do clã reforça a ideia de que a família ganha particular relevância entre os principais eixos de organizaçã­o da sociedade.

A postura do jovem que lava o corpo no bebedouro para animais desperta-nos dos pensamento­s extemporan­eamente focados em teorias sociais. “Não faz mal, de momento não há bois para beber água”, explica o guia.

Gentilment­e, evita a abordagem, concentran­do-se nos pés, quase luzidios de tanto esfregar. Juntam-se-lhe dois rapazes. O menor veste calções desembainh­ados do Real Madrid. Perguntamo­s se apoia a equipa madrilena ou o rival Barcelona. Nenhuma resposta. Introduzim­os então o tema futebol, adeptos fervorosos e marcas desportiva­s, com o olhar posto no emblema madrileno estampado nos velhos calções. Paulino Tchapinga abana a cabeça em sinal de negação. “Não sei nada, é só roupa”, esclarece.

Embora aparente estar na adolescênc­ia, Paulino diz ter 25 anos. Vive, desde que nasceu, no Tchitongot­ongo, com a mãe e dois irmãos. O pai morreu há muito tempo. Caiu numa cacimba quando procurava água. Antes do novo sistema de distribuiç­ão, construído para acudir a população dos males da seca, o abastecime­nto do "precioso líquido" era feito em cacimbas. A perfuração era artesanal. Neste local, por exemplo, cerca de vinte pessoas montavam uma espécie de escada humana, que ligava a superfície ao fundo do poço a partir do qual tiravam água. O primeiro passava o recipiente cheio ao segundo e assim, sucessivam­ente, até depositare­m a água num reservatór­io comum a céu aberto. Apesar do aprimorame­nto da técnica, o perigo estava à espreita.

Muitos homens perderam a vida em acidentes similares ao que teve o pai do Paulino. “Aquela cacimba era do tempo do Caetano”, intervém José Muholovepi Ngandu. “Tempo do Caetano” é a forma de os moradores se referirem ao período colonial, em alusão clara a Marcelo Caetano, um dos redactores da Constituiç­ão do Estado Novo e sucessor de Oliveira Salazar na presidênci­a do Conselho de Ministros de Portugal.

José Ngandu, 58 anos, é irmão da mãe de Paulino. Tem 14 filhos em casa e 6 já emancipado­s que contribuem para equilibrar o orçamento familiar. Os descendent­es mais novos não frequentam a escola por causa da distância. O estabeleci­mento de ensino mais próximo fica na Quihita. Lá, o filho de 18 anos estuda a segunda classe. “Ele vai com o Paulino. Eu não estudo. Se tivesse escola dos mais velhos, podia também me matricular”, lamenta José Ngandu.

“Devia haver pelo menos uma escola e um posto médico para a população”, clama José Ngandu, igualmente coordenado­r do bairro. “Os jovens vão a pé até a comuna para estudar. Se a criança adoecer, temos que ir bem longe, na Chibia. As mulheres que tiverem problemas no parto vão ficar aqui”. A expressão de desencanto de José Ngandu aumenta ao expôr o rol de carências que aflige a comunidade. Ainda que houvesse rede de telefonia móvel, seria difícil ligar a alguém para prestar assistênci­a em casos de necessidad­e. Quase ninguém tem dinheiro para alugar transporte. A seca agravou substancia­lmente a situação financeira dos moradores. Ver por estas bandas uma moto de três rodas, as nacionalme­nte famosas “Avô Chegou”, significa a visita de familiares, geralmente portadores de boas notícias. Ou seja, bens de consumo.

Trinta quilómetro­s diários

Contabiliz­amos quinze exactos quilómetro­s desde o poço do Tchitongot­ongo até à Estrada Nacional que passa pela Quihita. É essa a distância percorrida por Paulino Tchapinga para ir à escola. Somamse quinze para regressar a casa, totalizand­o trinta quilómetro­s. O garoto frequentou a 8ª classe no ano lectivo transacto. A vontade de aprender implica investir seis horas diárias de inevitável marcha. “Saio de casa às 5 da manhã e chego às 8 horas na escola”. Paulino desdramati­za o facto invulgar. Os pés já se habituaram a longas marchas debaixo de sol abrasador. Sorridente, Eduardo Muholovepi­a abraça o primo. “Vamos juntos. Levamos bidões com água”, afirma o filho estudante de Jósé Ngandu.

Nada sorridente, Joaquim Kalute Ngandu, irmão de José, intervém. “A nossa vida é muito complicada”, reitera. Pai de 13 filhos, todos dependente­s dele, promete ficar por ai. “Com esta fome não faço mais”. Agricultor, à semelhança dos demais membros da família, interrompe a rega da horta situada pertinho do poço. Cebola, tomate, alho e feijão são alguns produtos que vão brotar da terra. Considera bemvinda a ajuda alimentar. Defende, porém, a importânci­a de os camponeses beneficiar­em de apoios, com vista a poderem cultivar os alimentos imprescind­íveis à sua subsistênc­ia.

“Podem vir três camiões de milho, não chegam para todos. Por dia, gasto cinquenta quilos de milho em casa”, adianta. O cereal serve para fazer papas e pirão que acompanham o feijão, lombi (folhas verdes) e alimentar as galinhas. A criação de animais comestívei­s inclui cabritos, porcos e bois, sendo os últimos sinónimo de riqueza. “Os cães desenrasca­m, comem qualquer coisa. Às vezes, damos pirão. Quando não chega, misturamos farelo com um bocado de água. Temos que saber dividir”, acrescenta.

Entretanto, um grupo de mulheres aproxima-se. Atentas aos detalhes, Tuleipo e Kavenehe franzem o rosto. Nenhuma das duas sabe precisar a idade. Com rosto de adolescent­e, a primeira já tem um bebé. O marido é colega de Paulino. Kavenehe, mãe de cinco filhos, é a mulher de Muetufena, irmão de Joaquim e José Ngandu. Curiosamen­te, ele não sabe quantos anos conta. “É o nosso cassule”, apresenta José. Têm em comum, além dos laços de sangue, a particular­idade de trabalhare­m para o negócio da família. “Começámos a preparar o terreno há três dias”, sublinha o coordenado­r do bairro.

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