Luís Ngandu, pai de quarenta filhos
O burro chega lentamente. Magríssimo, o animal partiu sozinho da zona residencial. Carrega sobre o dorso cordas entrelaçadas, presas lateralmente a dois bidões amarelos. Pára defronte ao poço. Depois de a menina encher os recipientes de vinte litros cada, o “trabalhador doméstico” retorna ao aldeamento. Burro adestrado, pensamos. A pergunta despropositada escapa inadvertidamente. “Nada, está só a sofrer com a fome”, fala Luís Ngandu, até então distante da equipa de reportagem. “Olha só, esses miúdos vão todos assim”, indica em direcção ao quadrúpede. “Sem escola nem nada. Vivem como burros inocentes. O pai é burro, a mãe é burra e os filhos também são burros. Todos na mesma casa só sabem sachar (cultivar),” desabafa. “O jornalista tem que escrever a verdade.Não é dizer mentira, fazer mayuya, no Tchitondotondo estamos a viver mal”.
Luís Ngandu dá mostras de inconformismo. Pai de 40 filhos, vive com as quatro mulheres na mesma casa. Dois dos seus filhos “desenrascam” com o Kangulo no mercado da Mutunda, situado na capital da Huíla. Pertencem a classe vulgarmente denominada “raboteiros”, expressão derivada da palavra russa “rabota”, que quer dizer "trabalho", na Língua Portuguesa. Outros dois meninos estudam em Luanda. Os demais 36 vivem com ele.
“Este pequeno, se não tiver escola, vamos um dia lhe ver também a transportar kangulus nas paragens dos candongueiros no Lubango. Esses miúdos nunca vão ser professores. Vão crescer e morrer sem saber nada”, deplora.
Enquanto Luís Ngandu expõe a sua parcela de verdade sobre a terra onde vive desde a nascença, a mãe se acerca. Esguia, ornamenta o pescoço, braços e o peito nu com missangas coloridas. As pulseiras são igualmente vistosas. O pano amarrado na cintura é a única vestimenta. Contrariamente aos filhos e netos do sexo masculino, a mãe dos Nagandu e todas outras mulheres e meninas do clã andam descalças. Nada que abale o majestoso porte da matriarca dos Ngandu, típico das mulheres do seu grupo etno-linguístico. Impossível adivinhar a idade da mãe de oito filhos, duas do sexo feminino. A avó de Paulino, o miúdo dos calções madrilenos, saco de ligeiramente o pano azul que traz na mão esquerda. Percebemos um leve sorriso no rosto.
Longe de o inibir, a presença da mãe incentiva Luís Ngandu a falar. “Não temos rádio. Os nossos filhos nunca viram televisão. Estamos no mato, não temos nada. No Lubango, dão dinheiros aos miúdos para fazerem compras na cantina. Aqui, os nossos miúdos não conhecem dinheiro….” O pai dos quarenta filhos encerra o diálogo tão abruptamente quanto o iniciou. Os irmãos e sobrinhos seguem-no. O rapaz que veste a camisola com estampa da Frozen, a Princesa do Gelo, cruza os braços. Tinha muita vontade de ser entrevistado. Sacode os ombros. Depois do tio, nada a acrescentar. Mulheres e raparigas enchem os bidões amarelos.
Passa do meio-dia. É tempo de “sachar” a terra. Mulheres e homens cuidam da lavoura. Há muito trabalho pela frente. À saída de Tchitongotongo, conseguimos ver as casas do bairro. Raras folhas sobressaem no meio de arbustos secos. O contraste pode resultar numa belíssima descrição artística da paisagem. A sombra mal protege do sol. A temperatura sobe. A lenha está ao lado das casas. Nenhum sinal de fumo brota das cozinhas. A esta altura do dia, os fogareiros deviam estar acesos. Vemos apenas crianças a brincar. Conforme realça Luís Ngandu, eles “não conhecem bolachas”, pão ou dinheiro. Mas reconhecem o burro, aquele que carrega os bidões amarelos. As crianças exultam de alegria. Apressam-se a tirar a carga. O “trabalhador doméstico” abana a cauda. Diferentes especialistas em comportamento animal acreditam que o sinal expressa satisfação. Visto de perto, parece que o quadrúpede está a mastigar qualquer coisa. O certo é que, ao fim da tarde, algum tipo de refeição vai ser servida.