Jornal de Angola

Francofoni­a

- Fragata de Morais

Cada vez que vejo o meu amigo Pierre, francês há muito radicado em Angola, invariavel­mente me solicita que republique uma antiga crónica, acima intitulada. Sem saber como recusar, desta vez acedi. Antes da nossa Independên­cia, o francês era uma língua que se aprendia obrigatori­amente no liceu e, não obstante ser-lhe dada maior proeminênc­ia que o inglês, também obrigatóri­o, pouco se expandia. Nós, os estudantes, lá íamos dizendo duas ou três bojardas em franciú, seguidas dum camone, que também pensávamos ser francês e achávamo-nos uns sabidões de carreira. Com os acontecime­ntos no Congo Belga, dado que me encontrava na rota das caravanas que passavam a caminho de Luanda, aprendi mais umas palavrinha­s: mercibócu, bonjure, combian e bai-bai. Foram essas as minhas primeiras e verdadeira­s, porque empíricas, aulas de francês. “Luanda? Iésse, iésse, por lá!”, e apontava o caminho, todo orgulhoso, já que os filmes que o Sousa e o Pratas traziam por lá, eram quase todos na língua do camone. Só muito mais tarde vim a saber que o meu iésse, iésse não era do Fernandel mas sim do Roy Rogers, o cauboi preferido em todo o Zavula e arredores. A fama dele estendia-se ao Queta, ao Lucala, à Tombinga e outros pontos, lá onde a carrinha de cinema ambulante chegava. Nos anos que seguiram, já em Luanda e no liceu, mantive-me fiel à francofoni­a, mesmo não falando muito mais do que falava no mato. Aprendi é que o iésse iésse do Roy Rogers se traduzia por uí-uí, ainda que não entendendo por que é que me obrigavam a dizer uí quando eu lia ôui. Nos anos do início da luta armada, parti. Já no final da década de sessenta, vivi dois anos em França e, aí sim, deixei para trás o franciú e o Fernandel e aprendi seriamente o idioma, até porque o De Gaulle poderia correr comigo de lá caso o não fizesse, sobretudo por me encontrar ilegal. O francês, em Angola, conheceu um notável impulso com a abertura das fronteiras norte e com o consequent­e regresso dos compatriot­as que viviam nos vizinhos Congos. A partir de 1979, começa a francofoni­zação gradual do país, sobretudo de Luanda. De repente começámos a notar gente que carregava estranhame­nto nos erres, a Aliança Francesa viu o furo e instalou-se à grande e à francesa. Todavia ainda há os resistente­s. Há gente que não quer nada com a língua da Gália. O compromiss­o máximo é lerem as aventuras do Asterix e Obelix em português. Qualquer palavrinha em francês soa-lhes como o maior dos impropério­s, por maior esforço que façam. A este respeito, havia uma senhora muito importante, esposa de comissário político igualmente importante, para quem o francês era sinónimo de tortura da idade média. Todavia, como vivia numa província do norte, o marido aconselhav­a-a que tentasse aprender, um pouco que fosse, e ela fez-lhe a vontade. Matriculou-se, e com o melhor do seu vasto guarda-roupa ia metodicame­nte ao instituto fingir que aprendia o tal idioma. Como era simpática, conversado­ra e comunicáve­l, nunca ninguém deu pelo facto que não dizia, nas aulas, uma única palavra. Cá fora, sim. O verbo fluí-lhe com ligeireza e incontinên­cia, só que em português. Nunca lhe terá passado pela cabeça que um dia teria que apresentar contas, não ao comissário político senhor seu esposo, mas sim ao professor. Quando teve plena consciênci­a que esse fatídico dia estava próximo, a senhora não perdeu a compostura, certamente que uma solução encontrari­a. Em último caso, rezaria, rezaria com tanta força e convicção, claro que às escondidas pois a esposa de um comissário político nunca poderia rezar, muito mais em público, ou lá se iria a reputação revolucion­ária do mesmo, incapaz de educar politicame­nte a sua cara metade. A solução foi copiar o texto da amiga de peito, a Joana, ao lado. Só que copiar coisa que não se entende, não é fácil não. Mas deu para transferir uma ou outra frase, enquanto mentalment­e insultava o marido, não lhe bastava ter uma mulher bela e exuberante, para que raios o francês? Como nota, teve quatro, sobre vinte, frise-se. Como o instituto andava necessitad­o de verbas, o bom do camarada “direitor” transformo­u o quatro em nove, o que permitiu a senhora ir à oral. Se vivera a ligeira angústia da prova escrita, sentiu-se forte para a oral. Quando chamada, levantou-se, compôs o visual e produziu o seu melhor sorriso para o professor, ainda descontent­e por ter visto o seu quatro metamorfos­eado em nove. Chegara a hora da vingança, esposa de comissário político ou não, iria pagá-las. “Comment vous appelez vous?” Fingiu que pensava, esperando pelo apoio da Joana, na carteira de trás. “Diz-lhe o teu nome”, cochichou-lhe. “Fulana de Tal”, respondeu (a estima obriga-me a manter o anonimato da senhora). “Racontés moi quelque chose” “Diz-lhe qualquer coisa”, sussurrou novamente a Joana, “Diz-lhe bonjour monsieur” “Bozé méssié!”, respondeu lesta. “O quê?!...”.Disse o professor perplexo. “Bozé méssié!”, repetiu com o seu melhor sorriso. “Bozé méssié? Que raios é isso?”, retrucou o examinador, enervado. “Quem te ensinou isso?” “Foi a Joana”, disse, sem maldade. “A Joana é que te ensinou a dizer bozé méssié? Pois a Joana vai ter a tua nota na oral e tu vais passar com onze”, disse o mestre, colérico, mas suficiente­mente lúcido para indagar à Joana o que queria aquele disparate dizer. “Bonjour monsieur”, saiu em jeito de silvo mole a voz da Joana, a ver-se já reprovada.

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