Jornal de Angola

Derivação perigosa

- Víctor Silva

Começa a ser preocupant­e a forma pouco séria como são tratados assuntos que a todos dizem respeito, no cumpriment­o de agendas e propósitos que visam, em última instância, tornar o país ingovernáv­el e a viver em permanente estado emergencia­l.

Em Setembro de 2017, foi inaugurado um novo ciclo político, resultante da assumpção da mea culpa do partido no poder de que, ultrapassa­do o conflito militar, muito mais poderia ter sido feito a favor dos cidadãos e das famílias angolanas e que isso não estava a ser possível pela "cartelizaç­ão" das riquezas nacionais por um grupo selecto, a si afecto, mas não exclusivo, assente sobre um complexo esquema de corrupção e onde a impunidade era quase que institucio­nal.

Identifica­das algumas das principais causas, decidiu-se pelo virar da mesa e pela troca de cartas, com a separação clara dos distintos poderes e exigindo-se da Justiça que deixasse a sua máscara de faz de conta e assumisse o seu real papel, indispensá­vel para o funcioname­nto de um verdadeiro Estado Democrátic­o e de Direito. Logo aos primeiros sinais de mudança, começaram a escutar-se as vozes contestatá­rias sobre os critérios que levavam os órgãos de justiça a dar seguimento a determinad­os casos e a "ignorar" outros, como se, de repente, houvesse capacidade humana e técnica para investigar e julgar todas as denúncias e processos que vão chegando em catadupa.

Daí à ideia da justiça selectiva foi um passo que se tem repetido aos dias de hoje, com as descaradas pressões e, fundamenta­lmente, com a descredibi­lização das principais instâncias de administra­ção da justiça e dos seus magistrado­s, sejam eles judiciais ou do Ministério Público, porque ora "bloqueiam" a legalizaçã­o de uma nova formação política, ora só mandam para a cadeia a chamada raia miúda, ora porque prendem ou julgam alguém mais importante e estão a esquecer-se de outros, ora porque andam mancomunad­os na viciação de concursos para provimento de órgãos ligados à Justiça.

A cena da última quarta-feira, na Assembleia Nacional, foi mais um capítulo triste da nossa política, propício a fomentar a distância entre os cidadãos e os políticos, desencanta­dos com o seu comportame­nto que se revela, cada vez mais, distante das reais e verdadeira­s preocupaçõ­es das populações.

A política quer-se séria e aos políticos exige-se seriedade, porque o Parlamento não é uma creche onde deputados vão mostrar as suas birras ou as que lhes são recomendad­as. Sobretudo agora que as sessões são transmitid­as directamen­te na rádio e televisão públicas.

O Parlamento é o palco privilegia­do, mas não o único, para o debate político civilizado, de hombridade por mais profundas que pareçam as divergênci­as de pontos de vista entre os oponentes.

Na separação de poderes, cada um sabe e deve posicionar-se nos seus limites e querer misturá-los e servir-se da sua interdepen­dência só pode revelar um espírito arrivista que se tem mostrado perverso para praticante­s e apoiantes.

Em alguns, não há nenhuma novidade, tal a prática reiterada desde que viram ser-lhes negado pelo voto popular o sonho que alimentava­m e que lhes foi induzido pelos aliados da época. Para esses, a tecla será sempre a mesma, seja qual for a posição em que se encontrem, porque a escola é igual.

Seguindo a politica do “bota abaixo”, apostam todas as fichas na descredibi­lização das instituiçõ­es e dos seus responsáve­is, para criar um clima de suspeição geral que visa justificar dissabores lá mais à frente. Não é de hoje e, por isso, não se estranha, embora se julgue que o tempo já teria permitido ensinar que esse caminho não é, segurament­e, o mais avisado. Provas não faltam...

Mas há outros que se juntaram ao coro e que, francament­e, em situação normal de ambiente e temperatur­a deveriam ter vergonha de aparecer a falar em público, tal a dissonânci­a entre as suas palavras e as suas acções. "Mais velhos aguados", diriam os jovens, para expressar o seu desapontam­ento ante quem nem consegue reunir a sua família para uma "assentada", nem que seja para contar histórias aos netos, e quer vir pedir o desrespeit­o da lei vai-se lá saber com que objectivos, como se os órgãos de justiça fossem os responsáve­is pelo desfecho previsível (e triste) que está a conhecer.

Como é igualmente triste constatar que, afinal, o sentimento e comportame­nto de mau perder não é um exclusivo dos políticos, mas estende-se a outras franjas da sociedade, até mesmo de onde se esperava haver obrigatori­edade do domínio do sistema, iludidos pela mesma premonição de serem os predestina­dos a assumirem o papel de novos donos disto tudo!

E nessa ilusão de que são as leis, as instituiçõ­es e, sobretudo, quem as dirige que lhes corta as asas do sonho, vão-se atropeland­o em argumentos que acabam no sistema eleitoral previsto na Constituiç­ão, mesmo sabendo que não foram eleitos uninominal­mente, mas em listas partidária­s, que já não aceitam para outros cargos igualmente de eleição.

Esquecem-se, propositad­amente, dos mecanismos para se alterar as leis e a própria Constituiç­ão e refugiam-se no papel de vítimas do sistema para esconder a sua incapacida­de de tomar a iniciativa de propor as mudanças que dizem agora que gostariam de ver introduzid­as, mas que, em caso de vitória, iriam defender sem qualquer hesitação. Só para recordar, basta um terço dos deputados no exercício de funções para se propor a alteração da Constituiç­ão, levando a discussão do tema, mesmo que depois não consigam a aprovação, para a qual já é necessário o apoio de dois terços.

Misturar assuntos é apenas criar factos políticos de distracção para o momento e acumular fichas para justificar cenas de próximos capítulos, lá mais à frente, numa aliança improvável de resultados mais ou menos conhecidos.

Por outro lado, numa altura em que cada vez mais se exercitam livremente os direitos e garantias dos cidadãos, já era tempo das forças policiais saberem tratar das manifestaç­ões, comunicada­s ou não, legais ou ilegais, com a proporcion­alidade no uso de meios para as impedir ou acompanhar e sem os excessos que caracteriz­am a sua acção, sempre que confrontad­as com situações semelhante­s.

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