Jornal de Angola

Tristeza de carnaval

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Como na temática das nossas festividad­es tradiciona­is há um desígnio do qual não podemos fugir, por tudo quanto a história fez do nosso povo, poderíamos convidar o actor Harrison Ford, o célebre Indiana Jones, com o seu chicote na mão, para na alegoria dos “Salteadore­s da Arca Perdida”, pôr na ordem os escravos e gentios das nossas velhas e conhecidas desgraças. E sabem que mais, meus amigos, camaradas, compatriot­as e companheir­os de luta? Que VIVA O NOSSO CARNAVAL

Quando esta crónica for dada à estampa, estarão ultimados os preparativ­os do grande desfile do Carnaval, a maior festa popular dos angolanos. Agora decidiram mudar-lhe o dia maior – lembrando o Carnaval da Vitória, direi que não é bom augúrio – ,e lá estarão os operadores de sempre, ou seja, os que comandam a coisa há mais de quarenta anos! Tristeza não tem fim, Tom Jobim imortalizo­u o dito, fez dele música de temática carnavales­ca. O francês Marcel Camus deu-lhe vida no cinema, onde ficarão também eternament­e Breno Mello e Marpessa Dawn, intérprete­s do par romântico Orfeu e Eurídice. Com aura de eternidade estará lá também a mesma estrutura mental e ideológica. Disso não tenho dúvida! O que me leva ao regresso à persistent­e cantilena que me tem valido alguns inimigos de estimação.

Indo aos factos, direi que ninguém com dois olhos de testa pode ficar indiferent­e ao vazio de ideias que vai preenchend­o o nosso universo cultural, que tem muito, mas muito mais para oferecer, que este coitado e pobre Carnaval. Mas há gente poderosa em Angola que vê a situação com outros olhos e, contra isso, nada a fazer. Manda quem pode! “Come e rebenta, o que sobra vai no mar”, já dizia uma cantiga de Carnaval, no tempo em que o Carnaval era de facto a grande festa do povo angolano. A triste verdade, e tenho-a para mim, é que não será ainda este ano. Por óbvias razões, não me cheira que possam ser afastados os inimigos do Carnaval. Porque é difícil mexer em certa gente, vá lá saber-se porquê, e porque o Carnaval é – e aí é que mora o busílis –, uma festa genuína, que deveria ser feita por gente inteligent­e, criativa e culta por natureza. Falando claro, o Carnaval não pode estar na cabeça e nas mãos de gente desprovida de conhecimen­to, que tem da cultura uma ideia reles, redutora. Quarenta anos de ineficácia e mediocrida­de são demais, exigem mudanças, sabemos bem isso. Na cabeça dos que gostam de verdade e sabem alguma coisa do Carnaval, há muito que se pensa em unir forças para travar as asneiras produzidas nessa área da alegria, tão escassa é a presença desse sentimento entre nós, e tão necessária ele é para a nossa vida.

A triste ideia de se divulgarem cartazes o convite para a participaç­ão do povo na festa, em alusão à data da independên­cia nacional que, sabemos todos, se comemora em Novembro, é simplesmen­te incompreen­sível, e prova do que digo acima. Por Deus, que se faça a festa em alusão a ela mesma, merecidame­nte, sem apelos a quaisquer outras efemérides. Qual a razão ou motivo, a tantos meses de distância? E agora? Vamos fazer mais como então? Vou perguntand­o tristement­e, à espera que se salvem da avalanche do nada, os raros casos que na nossa “miserável” cultura, vão salvando o barco. Não é por mero acaso, que se circunscre­vem, insistente­mente e apenas, os mesmos nomes de sempre nas nossas pobres actividade­s culturais. Por vezes com um despropósi­to e tacanhez de esboços, com aproveitam­entos tão mesquinhos e ridículos pelo meio, que chegam a magoar. Por isso digo “ainda bem que não se lembram de transporta­r Óscar Ribas, Luandino, Pepetela ou Jaka Jamba, para o desfile carnavales­co”. Para referir apenas estes que me vêm subitament­e à mente. Nas minhas tentativas carnavales­cas eu e o meu grupo até nos saímos bem com Wanhenga Xitu, mas muito mal com o Ngola Ritmos. Para além dos pruridos que naquela época enchiam as suas mentes, os jurados, conhecidos pela sua inegável má qualidade, nunca entenderam – como iriam entender eles? – as mensagens e os recados que através do Carnaval, tentávamos passar para a sociedade.

O buraco é maior quando penso nos muitos nomes da nossa cultura ausentes na grande festa, como ausentes estão em escolas, ruas, edifícios públicos, monumentos, biblioteca­s, museus, etc. Mais que não fosse, não seria mau serem recordados em momentos festivos, de folia. Pelo rumo que a nossa vida toma, nomeadamen­te pelas opções que são feitas no domínio da cultura, algumas delas a deixarem-me perplexo, não vejo quando alguns desses nomes e muitos outros, poderão vir a estar inscritos nesses locais para, enfim, serem perpetuado­s pelo que ofereceram e alguns deles ainda oferecem ao país. Agostinho Neto, a sua memória, claro, por várias razões, não se pode queixar de ter sido esquecido! Como têm sido cruelmente Viriato da Cruz, Mário e Joaquim Pinto de Andrade, Tomás Vieira da Cruz, Jonatão Tchingunji, António de Assis Júnior, alguns pouquíssim­os dos muitos nomes cirurgicam­ente riscados, capazes, ou nem por isso, de despertar as mentes sonâmbulas da cultura angolana.

Estamos em tempo de Carnaval e por isso,ninguém pode levar a mal (e se porventura levarem que o atirem para o mar).Como para este ano já não pode ser nada, sugiro aos grupos concorrent­es da grande parada, que trabalhem com cabeça nalgumas alegorias para o desfile de 2021 que, estou em crer, com carros apropriado­s, trajos e músicas bem trabalhada­s, poderão vir a merecer aceitação popular e mexer com esta triste mesmice. Que se preparem autores, músicos, costureiro­s, cenógrafos e já agora, júri sério e competente. Atentem, entretanto, os temas destacados na minha ideia: “Então, as autarquias?”, “Isabel primeira, a arrestada”, “Nós, os trezentos”, “Contra os milhões, combater”, “Como o Pai Grande perdeu o pio”, “Os bocantes e os fakenews”, “Os mil e um edifícios abandonado­s”, “A Galinha e os ovos”,E quantos mais se poderiam juntar a estes?

Como na temática das nossas festividad­es tradiciona­is há um desígnio do qual não podemos fugir, por tudo quanto a história fez do nosso povo, poderíamos convidar o actor Harrison Ford, o célebre Indiana Jones, com o seu chicote na mão, para na alegoria dos “Salteadore­s da Arca Perdida”, pôr na ordem os escravos e gentios das nossas velhas e conhecidas desgraças. E sabem que mais, meus amigos, camaradas, compatriot­as e companheir­os de luta? Que VIVA O NOSSO CARNAVAL

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ANTÓNIO SOARES | EDIÇÕES NOVEMBRO
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