SARAH MALDOROR
Pioneira na adaptação da literatura angolana ao cinema
O cinema
é uma das múltiplas formas possíveis de contar uma história. A narração, entendida como substância focal da literatura, é o encontro entre o plano da história, ou seja, o assunto propriamente dito, e o plano do discurso, entenda-se, a forma como a história é contada.
Sarah Maldoror soube recriar o dramatismo e o lirismo dos cenários, ao nível do discurso cinematográfico, sobretudo nos momentos de tortura e descrição das personagens, sobre duas propostas textuais de Luandino Vieira, “O fato completo de Lucas Matesso” e a “Vida verdadeira de Domingos Xavier”, transfigurados nos filmes, “Monangambé”, 1969, e “Sambizanga”, 1972.
De facto, a expressão “escrita cinematográfica” confirma o diálogo sempre possível e visceral entre o cinema e os recursos infinitos do ritmo da ficcionalidade literária. Sobre o assunto, vejamos o que nos diz a professora brasileira, Olga Arantes Pereira, graduada em língua portuguesa, especializada em Cinema e Comunicação: “O escritor de argumentos procura sempre obter os equivalentes visuais das construções literárias. Tendo em conta que o filme procura contar uma história, essencialmente, por meio de imagens, jamais um romance poderá ser filmado com a absoluta fidelidade do original”.
Julgamos, na verdade, que o desaparecimento da realizadora, Sarah Maldoror, poderia constituir um momento para despoletar uma reflexão séria sobre o estado da actual produção cinematográfica angolana, na sua relação com os clássicos da literatura angolana, criando-se a possibilidade de criação de uma cinematografia voltada para os desígnios dos títulos bibliográficos de referência nacional.
Filha de Amede Ducados e de Catherine Sarthou, Sarah Ducados nasceu no dia 19 de Julho de 1929, em Condom, França, e morreu no dia 13 de Abril de 2020, em Saint-Denis, França, aos 91 anos de idade. No entanto, é inegável a sua angolanidade, plasmada, por direito próprio, pelo mérito, importância e grandiosidade intemporal da nacionalidade da sua obra.
Mérito
Intrépida e ousada, Sarah Maldoror esteve distante da literatura e do cinema colonial, com os quais manteve uma clara oposição. Lutadora incansável e anti-racista, possui o mérito de ter sido a primeira mulher que gravou o seu nome, com letras de ouro, na história do cinema angolano e pan-africano, ao aproximar dois sistemas semióticos distintos e complementares, o cinema e a literatura, numa altura em que não existia Cinema Angolano digno desta designação.
Monangambé
O conto, “O fato completo de Lucas Matesso” de Luandino Vieira, publicado na colectânea “Vidas Novas”, primeiro em Paris, sem data e revisão do autor, reeditado, depois, em 1975, pela UEA, União dos Escritores Angolanos, com data de 13 de Julho de 1962, está na base da primeira curta-metragem de Sarah Maldoror, “Monangambé”, com dezassete minutos de duração. O título do filme, Monangambé, foi inspirado na senha dos activistas angolanos para as reuniões clandestinas. O filme, rodado na Argélia e Brazzaville, em três semanas, com actores amadores, militantes do MPLA, Movimento de Libertação de Angola, teve a participação do actor argelino Mohamed Zinnet. “Monangambé” conta a história de uma mulher em busca do seu marido preso, em Luanda. O filme foi seleccionado para a quinzena do Director em Cannes em 1971, representando Angola, e para a primeira edição do Fórum do Festival de Berlim. Na verdade, “O fato completo de Lucas Matesso”, entendido pelo carcereiro e autoridades colonias como sendo a via pela qual passaria, de forma camuflada, um bilhete com informação dos nacionalistas, era o nome de uma iguaria típica de Luanda, que a esposa traria na próxima visita à prisão. Lucas Matesso sofre uma violenta tortura, afinal…“Essa comida de feijão de azeitepalma com peixe de azeitepalma, banana e tudo, que toda a gente nos musseques tem só a mania de chamar de “fato completo”. (pág. 23)
Sambizanga
O segundo filme inspirado na luta de libertação nacional angolana, “Sambizanga”, primeira longa-metragem
e paradigma cinematográfico de Sarah Maldoror, tem o cenário de Mário Pinto de Andrade e Maurice Bons, e foi apresentado no Festival de Cartago, em 1971, Tunes, Tunísia, e tem como actor principal, Domingos Oliveira, Yayá. O filme tem como base do argumento a
novela, “A vida verdadeira de Domingos Xavier” de Luandino Vieira, onde a tortura, pressuposto de denúncia, está igualmente presente.
Distinções
Sarah Maldoror ganhou, em 1972, o “Tanitd’or” no
Festival de Cartago, com o filme, “Monangambé”, e recebeu, em 2012, a Ordem Nacional de Mérito pelo governo francês. Ainda no mesmo ano foi homenageada pelo FIC, Festival Internacional de Cinema, pela sua carreira e participação na luta anti-colonial com os dois filmes “Monangambé” e Sambizanga. Em 2019, o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, no âmbito da 16ª edição do Festival Internacional de Cine Documental de Madrid, Documenta Madrid, dedicou-lhe a primeira retrospectiva da sua obra, em Espanha, certame que contou com a presença da cineasta. É importante recordar que o documentário, “Sarah Maldoror ou a nostalgia da utopia”, 1999, é um tributo da realizadora togolesa, AnneLaure Folly à Sarah Maldoror, sobre o seu trabalho pela liberdade dos africanos e reconhecimento dos poetas da negritude.
Negritude
As teses avançadas pelos teóricos da negritude, terão tido uma influência notória na concepção filosófica e primado anti-racista da obra cinematográfica de Sarah Maldoror. No entanto, dois filmes acusam a proximidade de Sarah Maldoror à Negritude, “Aimé Césaire, um homem, uma terra”, 1976, Martinica, escrito por Michel Leiris e “Máscara das palavras”, 1986, novamente sobre Aimé Cesaire. “À Sarah Moldoror , câmara no punho , combate à opressão , alienação e desafia a estupidez humana”, foi a dedicatória de Aimé Cesaire, em reconhecimento.