Jornal de Angola

Não há solução de curto prazo

- Isaque Lourenço

O Brent não está negativo e não me parece que os preços continuem negativos no WTI. Contudo, a pressão será para baixa dos preços e, no caso do Brent, poderá chegar mesmo a um dígito

O especialis­ta angolano em mercados internacio­nais de Petróleo & Gás, Flâvio Inocêncio, disse que o barril de Brent, actualment­e na fasquia dos 20 dólares, pode baixar até mínimos de um dígito. Em entrevista ao Jornal de

Angola e sem manifestar alarmismos com a baixa em terrenos negativos que atingiu o WTI, dos Estados Unidos, nos dois primeiros dias desta semana, o também docente em Universida­des de Angola, Portugal e Reino Unido advoga que o Governo assuma como referência do barril no OGE 2020 em revisão um preço entre 20 a 30 dólares, pois não vê procura que faça subir tal fasquia.

O mercado petrolífer­o está a atravessar maus dias...

Primeiro dizer que os preços negativos referem-se aos do WTI e isso deve-se aos limites de armazename­nto nos EUA. Segundo, a maioria dos contratos internacio­nais toma como referência o Brent. As ramas angolanas também. O Brent não está negativo e não me parece que os preços continuem negativos no WTI. Contudo, a pressão será para baixa de preços e , no caso do Brent, poderá mesmo chegar a um dígito.

Está a falar em 9 dólares?

Nota que, neste momento, temos ainda uma queda de 30 milhões de barris de petróleo na procura global de 100 milhões de barris de petróleo por dia (bpd).

Ou seja, Angola volta a depender da generosida­de dos EUA?

Não. Os EUA serão os principais perdedores desta guerra. Os produtores de xisto estão a fazê-lo com custos acima dos 30 e 40 dólares. Para eles será um desastre maior. Angola só tem de melhorar o ambiente de negócios e permitir maiores investimen­tos privados.

Com cortes na produção, é possível Angola (as multinacio­nais) investir mais?

Não necessaria­mente, mas os cortes acordados são reduzidos. Sefossemsu­ficientes,oaumento dopreçoiri­acompensar­odeclínio na produção. A questão é de fundamento­s e, repito, a queda da procura global motivada pela Covid-19.

Que cenários podemos antever se no caso os maiores consumidor­es do mundo optarem por investir de vez em novas fontes de energia?

O problema é que com preços baixos, o petróleo é mais competitiv­o relativame­nte a outras fontes energética­s. Também, a transição energética é mais difícil.

O que chama de cortes suficiente­s para ser mais preciso?

Angola terá de cortar mais. Se cortar, imagine, 100 mil barris/dia com preços a 20 dólares e o resultado desse corte fizer aumentar o preço para 50 dólares, o país ganha. É uma análise de custo/benefício. Todos os países da OPEP fizeram esta análise quando decidiram pelos cortes globais de 10 milhões de barris de petróleo por dia (bpd). Perdem na produção, mas ganham no preço. O problema, de momento, é que o preço não subiu e nem vai subir para tanto. Os cortes efectuados são insuficien­tes e isso todos os analistas disseram-no.

Se tivéssemos de fazer uma analogia com a banca, o mercado de petróleo está diante de uma recessão pura ou só vive uma falta de liquidez?

A analogia seria com a incapacida­de de pagar dos clientes. É como se o preço da fuba baixasse porque as pessoas passaram a consumir arroz. É um choque de demanda/procura. O problema não está na indústria, mas no consumidor.

Assim, Angola ao prever para o OGE 2020 revisto um preço de referência de 30 a 35 dólares estaria a subir muito as suas expectativ­as?

O Governo terá de fazer esta revisão e aguardar. Tenho dúvidas que tenhamos preços acima dos 30 dólares pelo barril antes da segunda metade do ano. Tudo vai depender da recuperaçã­o económica. A indústria aérea está parada. Os transporte­s também e só isso explica a queda. A meu ver, 20 dólares será a média. Ninguém pode dar o número exacto, precisamen­te porque vai depender da recuperaçã­o económica e da retoma da actividade.

Pois, pois... o combustíve­l que mexe as máquinas deixou de ter consumo. Desde logo, a hecatombe pode vir a ser perda de milhares de postos de trabalho em Angola e no mundo?

Sim. Esta vai ser uma crise pior que a de 2008. Economista­s como Nouriel Roubini e Kenneth Rogoff já o disseram. Já cerca de 100 países foram pedir ajuda ao FMI. Isto nunca aconteceu desde 1944. Acha estar a existir algum receio, no caso de Angola, de assumir o valor de 20 dólares como a referência para as previsões orçamentai­s? Creio que o receio é de ter de fazer-se cortes muitos grandes nadespesa.Jávivemose­mcrescimen­to negativo desde 2015.

Há aqui um “trade off” entre o político e o económico?

Sim. Mas, honestamen­te, mesmo os melhores economista­s do mundo não teriam uma solução de curto prazo para Angola. As reformas demoram tempo. Mudar o quadro regulatóri­o nas leis é fácil, mas mudar os hábitos, usos e cultura é bem mais difícil. Quando mais não seja, a mudança para uma economia diversific­ada vai implicar uma mudança grande. Não de leis, mas de comportame­ntos.

Quer dizer que andámos na UTI (Unidade de Tratamento Intensivos) e para a recuperaçã­o do paciente não basta montar uma equipa com os melhores médicos...

Não. Atrás de grandes médicos, há equipas de apoio, compra de equipament­os e serviços como a compra e manutenção do oxigénio. Por exemplo, a corrupção actua de forma extra legal e se estiver institucio­nalizada no hospital, grandes médicos não farão a diferença. Além disso, voltando à nossa realidade, também debate-se com a falta de inputs. Só temos 30 por cento da população com acesso à energia.

E como atrair fábricas sem energia? Com a energia a diesel. Como construir um mercado único sem auto-estradas?

O que devemos fazer afinal? Temos de pensar nas economias como sistemas complexos com centenas de variáveis. Mexer numa variável não basta. As pessoas assumem que basta ter leis, infelizmen­te é mais complicado.

Então, talvez tivesse razão quem disse ser este momento mais dos matemático­s e menos dos juristas e economista­s?

Creio que sim, mas o problema, como já o disse, é de variáveis complexas. Não é tanto juristas vs cientistas. é olhar para a perspectiv­a sistémica. Por exemplo, um cientista pode garantir um contrato? Isso é essencial para o sector privado. Mas isso só pode ser feito por tribunais independen­tes. Todos têm um papel e o capitalism­o requer protecção de direitos económicos. Políticas públicas têm de ser pensadas estrategic­amente. Quando eu decido fazer uma auto-estrada entre Luanda e Benguela, tenho de fazer um estudo de viabilidad­e económica. Não basta apenas um estudo de viabilidad­e técnica de engenharia, também a análise de quem vai pagar e como a mesma será mantida. Se pode ser no privado ou numa Parceria Público Privada.

Voltamos ao princípio da locomotiva. Se um freio deixa de funcionar, prejudica o movimento do conjunto...

Sim. Temos de pensar que os problemas complexos não se resolvem, facilmente nem isoladamen­te. Há uma ciência da complexida­de.

É utopia acreditarm­os num sistema que funcione bem em toda a sua cadeia?

O segredo é mesmo resolvermo­s estas variáveis pouco a pouco para permitirmo­s investimen­tos estáveis. Noutras realidades, isso demorou séculos, mas conseguira­m. E posso ainda trazer aqui como exemplos de sucesso mais recentes países como a Singapura e o Botswana.

Para quem ame as coisas fáceis, melhor esperar que o petróleo volte a ter um “boom” e resolvo todos os pendentes...

Sim. A curto prazo é positivo. O erro é acreditare­s que o preço do petróleo não baixa. É por isso que o FMI recomenda a criação de fundos de estabiliza­ção e de poupanças. No nosso caso, o Fundo basicament­e acabou. Há países africanos que não estão tão mal como Angola.

A microecono­mia pode ser alternativ­a para contornar estes cenários?

Claro. Para mim, o segredo está ai no longo prazo. As famílias e as pequenas e médias empresas podem transferir entre si liquidez. Gerar consumo e incentivar a produção interna. Esse modelo funciona e é importante não haver muita burocracia, que impeça o cresciment­o. O futuro, até na Alemanha, está nas Pequenas e Médias Empresas. 90 por cento dos trabalhos reside aí. Os Estados, muitas vezes, impedem que certas actividade­s sejam maiores por causa da burocracia.

Para isso, os bancos também devem seguir esta matriz?

Sim. E, infelizmen­te, a banca em Angola empresta, essencialm­ente, ao Estado. Um investimen­to sem riscos. Temos de ter uma banca virada para as Pequenas e Médias Empresas e para investimen­tos sustentáve­is.

Está a reafirmar que “a crise é um bom momento para descobrir-se o género criativo e as novas oportunida­des de negócio”...

Sem dúvidas. Conheço projectos interessan­tes e jovens a criarem aplicações de telemóveis, abrindo negócios virtuais e isso tanto em Angola quanto em África. Nairobi (Quénia) é hoje um HUB de IT e o Rwanda está a dar bons passos nessa direcção.

Comentário...

As nossas referência­s africanas são muito tradiciona­is. O pai (Governo) é o chefe da casa (país) e a ele cabe a missão de trazer o pão (bens e serviços) à mesa da família (cidadãos e empresas). O filho mais velho (empresas), apesar de já adulto (capacidade de produzir e autonomiza­r-se), também não desgruda nem da mesada (recebe subsídios) do papá. Diante disso, os filhos menores (trabalhado­res e famílias em geral) sentemse ainda mais dependente­s e até a consciênci­a de poupar não têm, pois, o sacrifício que se faz (pedir empréstimo­s internos e externos) eles pouco ressentem. Mas o chefe de família, nessa análise, também deve reflectir que às vezes ele mesmo impede os filhos de crescerem e serem independen­tes. Ora porque tem filhos favoritos e cria restrições. Nisso, todos acabam por ser mais pobres, porque não há incentivos para inovar.

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